30 março 2005

vento e o sonho dos adolescentes

O vento agitava suavemente as folhas das árvores e dos arbustos, provocando um doce murmurar na paisagem. Ao longo da negra estrada e paralelo a esta saracoteava um muro baixo pintado de branco com estranhos grafittis monocromáticos de aspecto paramilitar. Implantadas como gigantescas aranhas na ainda assim bela e imensa planície verde eram visíveis ao longe as rampas de lançamento do espaçoporto onde chegavam e de onde partiam para o espaço cósmico naves de todos os tipos. Naves de transporte de pessoas e de cargas, naves de passeio, naves de exploradores, naves militares de destinos secretos, enfim naves de todas as formas e feitios, imensas e brilhantes como sóis.

Era o que observavam os dois rapazes, amigos e colegas de escola, ao lado um do outro, deitados de bruços no alto de um pequeno morro. Um deles, morador na cidade, tinha ido passar as férias a casa do outro que habitava na pequena vila perto do espaçoporto. Este tinha-o desafiado para irem até lá para verem as naves partirem e chegarem, o que era um espectáculo fabuloso e que ele nunca tinha visto ao vivo mas com o qual tinha sonhado muitas noites.

Sonhava que era um garboso e valente comandante de uma nave militar de combate e que todos os dias tinha missões no espaço exterior, onde vivia as mais arriscadas aventuras, regressando sempre à Terra, aterrando a sua nave para ser reparada e passando o resto do dia contando aos amigos e amigas, sobretudo às amigas, as suas aventuras e ansiando por regressar ao espaço e enfrentar audaz o perigo. Enfim, sonhos de um jovem adolescente. Partilhava este sonho com o amigo. E muitas das suas brincadeiras e jogos giravam em torno desse tema. Tinham mesmo formado um clube a que, pomposamente, chamavam Clube Apollo XXI do qual eram os únicos sócios. Ora, pois se para ser sócio, tinham posto como condicionante que os candidatos soubessem de cor os nomes, as moradas e os números de telefone de todos os astronautas e os nomes, os pesos, as medidas e as velocidades de todas as naves da história espacial humana!

De tempos a tempos uma imensa nave rugidora surgia do alto, primeiro silenciosa mosquinha negra contra o azul do céu, depois troante crescendo agigantando-se, que suavemente pousava numa daquelas plataformas da esperança. Numa qualquer outra rampa, em alternância, o processo era inverso e era uma que partia. Partia para onde? Para uma terra longe da Terra. Assim lá estavam deitados os rapazes, perdidos no longe. No longe que as suas jovens vistas alcançavam e perdidos no longe que a vista não alcança. De tal modo concentrados nos sonhos e alheados dos corpos que não se aperceberam que com o lento passar do tempo o vento, que tinha sido brisa, aumentara, crescera, soprava e rugia agora com violência vergando as árvores e levantando no ar as folhas e a poeira.

O vento cresceu. Cresceu muito. Transformou-se num gigante. Um gigante que tudo estremecia e volteava. E, de súbito, uma rajada imensa, imparável, vinda talvez de uma das terras sem fim, arrimou junto dos garotos e, sem que eles o conseguissem evitar, surpreendeu-os e arrebatou-os ao solo. Içou-os no ar. Curiosamente fê-lo sem violência. Rapidamente num golpe certeiro, mas sem estremeção, como uma mãe que na praia arrebata o seu bebé afastando-o da onda que ameaça tragá-lo. Energicamente mas sem magoar. Foi assim que o vento pegou nos rapazes e os levantou no ar. Pegou neles com as palmas das mãos. E transportou-os. Foi tão rápido que eles nem conseguiram reagir. Simplesmente, planaram. Viram-se de súbito a vogar por sobre o solo a uma altura que pertence só aos pássaros. Deixaram-se levar. Que outra coisa podiam fazer?

O vento transportou-os pelo ar durante algum, breve, tempo. Quando achou que já chegava, como pai que empurra o baloiço onde o filho se diverte, murmurou-lhes um suave: chega. E começou a descê-los em direcção à terra, soltando-os docemente sobre um relvado verdejante onde ficaram deitados de bruços na mesma posição em que tinham saído do morro. Olharam à volta. Nada do que viam era reconhecível. Não viam o espaçoporto, nem o muro, nem as rampas, nada. Tudo tinha desaparecido. Viam apenas uma imensa planície relvada estendendo-se em todas as direcções, no horizonte fundindo-se com um céu que já não era azul. Era avermelhado. Olharam espantados um para o outro. Sentiam-se ligeiramente entorpecidos e paralisados. Durante alguns minutos não se mexeram. Fizeram-no bruscamente quando uma voz estranha soou atrás deles. De um salto puseram-se em pé e olharam na direcção da voz.

— Sr. Comandante e Sr. Imediato, são horas de partirmos — disse o homem alto, fardado com a farda azul da Força Espacial, ao mesmo tempo que fazia uma continência. Só então repararam que eles próprios estavam fardados com a mesma farda azul. Só então repararam na gigantesca nave vermelha e negra pousada a poucas centenas de metros. Só então repararam que não eram miúdos. Só então repararam que o vento tinha caído.

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