30 março 2005

quem sou eu?

Olho os meus olhos. Aquele olhar, por vezes duro e lampejado de crueldade maligna e gelada como a neve nevada, outras vezes doce como a pele glabra dum recém-nascido, é reflectido pelo espelho com uma acutilância incredível. Perfura-me as pupilas. Numa bioquímica feroz, como um animal selvagem, rasga-me os nervos ópticos, invagina-se neles furiosamente e com uma raiva taurina crava-se-me no cérebro. Então, vejo-me claramente. Uma negra negritude pesada, densa, eterna e infinita, sem espaço e sem tempo... Uma luminosidade crescente... A encher o todo... A preencher revolteante o continuum espácio-temporal... Aquela fornalha imensa... Aquele explodir de galáxias e de estrelas e de cometas e de planetas e de asteróides e de nuvens de gás e poeira e de bolas de fogo... Aquele... cosmos... cosmos? cosmos caótico... caos cósmico... ordem, desordem... Aquele caos... Sim, aquele caos... É caos que me olha! O universo é caos! O caos é a essência do universo! Eu sou caos! Tu és caos! Nós somos caos! Mas essa coisa a que chamam Estado é cosmos, é a desordem da ordem... Toda a ordem é arbitrária, porra!... Se for verdade... Tenho que espalhar a notícia reinventada, dizer a toda a gente!

Núzinho em pêlo! Estou em pé e com a roupa que Zeus me deu. Os braços tombados ao longo do corpo e a cabeça caída para a frente, mirando com o olhar deslavado outras cabeças. Mexo-me, levanto lentamente a cabeça e os meus olhos descrevem um arco grave, circunspecto, penetrante, de um lado a outro. Conto três paredes baixas, grotescas e incolores à minha volta. Paredes ocultas em corpos que até parecem humanos, uns fardados outros também. Podem estar bem dissimuladas para alguém mais distraído mas vejo bem que são paredes, não são homens. Todas me fitam e acusam e todas me sorriem estupidamente na cara. Paredes estúpidas e hipócritas! Miro-as de alto a baixo, medindo-as com cuidado, tentando não mostrar nem medo nem surpresa. Sei porque estou ali. Mas devo com certeza ter feito figura de palhaço, pois o sorriso idiota e cínico delas transforma-se numa gargalhada uníssona que me esmaga pelo excesso de maldade. É humilhação a mais. Não o suporto. Fecho os olhos, cerro as maxilas, aperto os dedos das mãos e escarro-lhes naquelas trombas de filhas da puta! Espancam-me quase até à morte!

Sobe a escada suja de madeira velha a cheirar a mofo, com o labrego atrás a apalpar-lhe lascivamente as nádegas roliças, a dizer frases obscenas: ‘Vou-te fazer e acontecer...’ e a arrotar álcoois a pedirem para serem vomitados. Abre a porta, que range lugubremente no silêncio da noite cúmplice. Não demora muito tempo, como é hábito. Despe-se, deita-se sobre o leito mal amanhado e abre as pernas, expondo a flor húmida e vermelha como uma planta carnívora prestes a devorar um insecto cretino. O labrego começa a despir-se. Mostra-se. É mesmo um insecto, escamoso e repelente. Não tem uma cor uniforme. Algumas zonas do seu corpo, brancas, parecem ter sido metidas em lixívia, outras, vermelhas, esfregadas com alcatrão a ferver. Por fim, tira as cuecas, que devem ter servido para fazer café de saco tão grande é a profusão de borras. Lambe as beiças clericais, dirige-se à cama e ajoelha entre as pernas dela. Deve ser cavador, com certeza, pois antes de agarrar o membro túrgido e erecto cospe na mão, esfregando-o depois com a mão ensalivada. Se calhar é para amaciar os calos. Pouco há a dizer do que acontece depois. É o normal. Cavalga, resfolega, sua, grita, ejacula. Em suma fornica. Mas primeiro, paga. Tudo tem um preço!

01h55m da madrugada. O bar está deserto. Bem, para ser franco, não é verdade. Estão cá dois bichos. Bichos, disse eu, não disse bichas! E mesmo que tivesse dito bichas? Antes bichas que bichonas. Ou pior ainda, bichanos ou bichinhos. Adiante. A verdade é que não há mais ninguém no bar além destes dois animais. E o saxofone de Charlie Parker a vibrar, escorrendo liquidamente pelas paredes em sonoridades macias com cheiro a sexo húmido. Ela, com uma energia nocturna, fremente, esfrega o tampo do balcão com um trapo que certamente já viu melhores dias. Os seus lábios generosos seguram um marlboro meio consumido mas ainda pleno de erecção. Os seus seios agitam-se numa dança alucinante como balões prestes a rebentar, ameaçando evadirem-se daquele tarrafal ao qual um porco chauvinista de algodão amarelo e alças os condenou. O seu corpo, espesso e carnudo, faz pensar, não nos melhores dias que já viu, mas nos óptimos dias que tem para ver. Eu, sentado a uma mesa, abano suavemente a cabeça e acompanho a música com o bater do pé dando, de tempos a tempos, um gole no jack daniel’s que dança no copo que tenho à minha frente. Seguro entre os dedos um sg filtro, que chupo com avidez de vez em quando, inundando o meu rosto suave com um clarão rubro, demoníaco, que viola ostensivamente o meu ar aparentemente angélico. Pareço nervoso, ou talvez ansioso, pois mexo frequentemente no zippo. Pego-lhe, abro a tampa, acendo-o, fecho a tampa, volto a pousá-lo muito direito à minha frente, junto ao maço de tabaco, sempre no mesmo sítio, de forma metódica, calculista, estudada. Porquê esta ansiedade anacrónica? Sei os nomes de todos aqueles temas de Parker: Bird’s Nest, o meu cantinho... How High The Moon, bela e perigosa... Cool Blues, é assim a vida...
O bar fechou e saímos os dois. Ponto final?

3 comentários:

SL disse...

Deixe-me dizer-lhe que a sua escrita é um pequeno tesouro da blogosfera...
Jinho

Unknown disse...

Olá Jinho 'vera cymbron'!

Obrigado pelas simpáticas palavras, tão refrescantes vindas do longe-perto que são os Açores e de alguém que também gosta de JAZZ e PESSOA (é, fui espreitar o perfil... :) )
Tenho dificuldade em rever-me em elogios que me façam, se bem que me agradam, como a toda a gente, é claro. Também já tem acontecido o contrário e eu sentir na pele o ardor da crítica feroz.
Escrevo o que gosto, como gosto, como sinto que me diz alguma coisa, sem pretensões sequer a ser considerado escritor. Sou apenas um homem que escrevinha, entre outras coisas que faço.

Agora estou com pouco tempo mas fica aqui prometida uma visita ao seu blog.

[ ]

Isabel Magalhães disse...

Caro José António;

mea culpa... nunca tinha passado por cá!

sei que escreves, como escreves... (já te leio há muito noutras leituras) e eu que nem sou de ler contos dei por mim a gostar muito desta forma TUA de escrever contos...

Não sei quantos contos mais deste ao blogue - ainda só li até aqui - mas sei que por direito próprio e de mérito são contos para estar no papel, com lançamento... a pompa e circunstância da praxe, os amigos e afins...

E uma edição conjunta... autor/editora... já pensaste nisso?

Vamos tratar do assunto? :)

Um []