30 março 2005

o mundo inferior

Aqueles corredores formavam um gigantesco emaranhado labiríntico no qual não era fácil alguém orientar-se. Era conhecido pelos habitantes da Cidade pela designação de Mundo Inferior. Escuros, cinzentos, com a pintura escamada a cair como a pele de um lagarto velho e a humidade a escorrer pelas paredes, mal iluminados por candeeiros suspensos, de luz amarelada e mortiça, alguns deles há muito tempo sem lâmpadas, não admirava que fossem o refúgio preferido do bas-fond, de toda a espécie de escumalha, emigrantes ilegais sem emprego, criminosos, andróginos e prostitutas que daqueles corredores faziam os seus locais de esconderijo e de trabalho, escumalha misturada com muitos mutantes, cuja origem era desconhecida, e com imensos sem-abrigo, gente que habitava as zonas inferiores da Cidade, subproduto dela própria, e ali se escondia longe das vistas de todos, aliás para satisfação daqueles que afirmavam que naquela Cidade não havia miséria.

Mas ela existia. Por isso, naqueles corredores, era possível encontrar por todo o lado restos de comida, ávida e loucamente disputados por enormes e gordos ratos cinzentos, restos de roupas, latas, caixotes e caixas, grandes pedaços de cartão com os quais se tapavam para dormir muitos dos indigentes, vestígios de lixo humano e mesmo dejectos pelos cantos. Não era raro também encontrar cadáveres em decomposição meio comidos pelos ratos, esquecidos, porque eram de gente que não tinha quem os recordasse. Ao longo dos corredores junto à junção onde as paredes subindo se encontravam com os tectos, tubagens metálicas, negras, ou castanhas de ferrugem, corriam, algumas finas como braços outras suficientemente largas para nelas caber um homem deitado. Tubagens cheias de fissuras das quais permanentemente pingavam líquidos de cheiros fétidos e cores escuras. Nalguns sítios os tectos tinham cedido derrocando, formando montes de entulho que dificultavam a deslocação. No ar havia um permanente eco surdo e grave de maquinaria a funcionar algures nalgum recanto longínquo e profundo.
Este labirinto de corredores tinha sido construído no nascimento da Cidade, que cresceu feita de metal, plástico e vidro por cima dele. Tinha sido construído para ligar os edifícios uns aos outros permitindo a comunicação entre estes, comunicação que não podia ser feita pelo exterior devido aos elevados índices de poluição atmosférica que tinham tornado, naquele planeta, o ar irrespirável. Ar que para ser puro, tinha que ser fornecido à Cidade por uma enorme central de purificação, um coração vital bem no centro de toda a imensa estrutura que era a Cidade.

Era ao longo de um destes corredores que se deslocava Adriano respirando com dificuldade o ar bafiento, mistura de odores a morte, e pensando no motivo que o conduzira àqueles corredores onde nunca pensara voltar, depois de desactivados devido a obras alternativas feitas na superfície. Desde criança que vivia naquela Cidade, tinha lá nascido. Brincara muito naqueles corredores quando estavam activos e eram, ao fim e ao cabo, as ruas da Cidade, nas quais ele e os seus amigos patinavam nos seus skates a caminho da escola. Ruas por onde mais tarde passeara com namoradas e amigos nunca imaginando que um dia essas ruas se viriam a tornar naquilo: o Mundo Inferior. Onde as pessoas da Cidade nunca penetravam a menos que tivessem perdido a cabeça. Eram muitas as histórias que se contavam sobre pessoas que por isto ou por aquilo tinham descido àqueles corredores e que tinham sofrido estranhas mutações e acabado por desaparecer, talvez voltando para aqueles corredores onde afinal viviam tantos mutantes. Mutações por causas nunca apuradas. Adriano nunca conhecera ninguém nessas condições, mas não tinha motivo nenhum para considerar essas histórias falsas. E por isso era com o coração apertado que se deslocava ao longo dos corredores. Só mesmo um motivo muito forte o poderia ter feito arriscar-se daquela forma. E tinha um motivo bastante forte. Encontrar Nietzsche!

Por mais incrível que tal pudesse parecer. Encontrar Friedrich Nietzsche. Nas suas buscas do saber tinha conhecido uma mulher que vivera no Mundo Inferior e que tinha conseguido voltar à Cidade sem grandes sequelas. Fora ela que lhe dissera que se tinha cruzado uma vez com Nietzsche no Mundo Inferior. A princípio não quis acreditar. Afinal Nietzsche morrera em 1900, há mais de meio milénio! Era certamente um delírio dela. Mas citações que ela fizera, indubitavelmente nietzschianas pela forma e pelo conteúdo, e que ela não podia de modo algum conhecer pois eram coisas só ao alcance dos estudiosos, o que ela não era, levaram-no a pôr a hipótese de... Assim partira para tirar a limpo aquele mistério. E afinal era verdade, como constatara depois de penetrar no Mundo Inferior. Ninguém sabia como ele lá tinha chegado nem como era possível que estivesse vivo, se é que o estava. Mas a verdade é que lá se encontrava, respeitado por todos como um santo, o que aliás o divertia por um lado e o chateava à brava por outro.
Descera pela escada de acesso do seu próprio edifício, a qual terminava num cubículo escuro com uma porta vermelha que tinha colado um enorme aviso que dizia ‘Perigo, não passar, a Alta Autoridade da Cidade não se responsabiliza por qualquer acidente que os infractores possam sofrer, ficando estes entregues à sua própria sorte’; porta que dava para os corredores e que não fora difícil de abrir pois a fechadura estava enferrujada e completamente apodrecida, tendo saltado com um simples encontrão que dera na porta. E assim entrara no Mundo Inferior. Assim que passara a porta, logo ao fundo desse primeiro corredor, encontrara um mutante de olhos vermelhos cujos braços inertes e raquíticos, quatro no total, saíam da cabeça pendurados como grossas cordas. Mutante com o qual falara e que conhecia Nietzsche indicando-lhe onde o poderia provavelmente encontrar. Assim continuara, com alguma certeza e convicção, procurando no fundo da memória a disposição dos corredores e as suas direcções para atingir a zona que o mutante lhe indicara.

Caminhou horas e horas. Finalmente, chegou à velha praça. A sua memória era ainda boa e conseguira extrair-lhe as direcções e os caminhos para ali chegar. A praça era um grande largo com um jardim com bancos no centro. Para aí se dirigiu pois podia divisar uma figura humana, um velho de roupas escuras e cabeça branca sentado num dos bancos. Aproximou-se e imobilizou-se a curta distância. Apesar dos ralos cabelos brancos e do rosto enrugado como solo ressequido, ele era reconhecível por trás daquele farto e nobre bigode outrora negro. Bigode sob o qual a boca se resumia a uma linha fina e dura. Uma linha fria como uma lâmina de gelo. Enquadrada pelos olhos, de um azul profundo como a eternidade, que fitaram Adriano sem pestanejar, inquiridores, com a força de dois punhais aguçados. Adriano mantinha-se imóvel. Agora que tinha atingido o seu objectivo, não sabia o que fazer, não sabia o que dizer. Sentia apenas. Sentia sobre si num abraço asfixiante a autoridade do Sábio. Parecia-lhe que nada havia a dizer por tudo ter já sido dito. Entretanto, o velho mexeu-se. Estremeceu como se o frio o tivesse conquistado de vez e, sem tirar os olhos de Adriano, levantou para este o dedo indicador apontando-o, parkinsónico, e com uma rouca voz germânica disse, em alemão antigo:
— Guardai-vos de cuspir contra o vento! Afasta-te da turba! Cuida da tua higiene como eu cuidei da minha e por isso sou tão sábio!

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