30 março 2005

trovão na nave

O corredor rectilíneo, metálico, brilhava húmido. Pequenos focos luminescentes, pirilampos neónicos, pegajosa e purulentamente cravados no tecto, ejaculavam jactos de luz verdengosa que pingava como ranho no pavimento sujo e molhado.

O homem estava nu. Com calma mas energicamente caminhava pelo corredor sondando todos os esconsos, cumprindo uma qualquer missão de exploração. Foi apanhado de surpresa pelo súbito e imprevisível estrondo. Como um trovão jurássico, um som cavo ressoou na nave abandonada violando o silêncio perene. Parecia um imenso gongo, longínquo, distante. O homem, atingido pelo espesso ronco, perdeu os sentidos, fechou os olhos e, indo abaixo nas pernas, caiu no chão. Ficou imóvel como um boneco de trapos. O eco do trovão, que ficara a ressoar, deixou de se ouvir. Fez-se um silêncio absoluto. O espaço e o tempo pararam e imobilizaram-se. O corpo do homem ficou ali caído. E assim foi durante milénios.

Era linda! O olhar intenso e profundo, espelhado em olhos cor de mel e pupilas de antracite. O nariz pequeno, agarotado, perfeito. A boca de sorriso maroto. Pequenas covinhas nas faces tímidas. Os cabelos castanho-claro com laivos de ouro, tocando a base do pescoço, ondulavam em liberdade, inebriantes. Deslocava-se com a graça de uma deusa. Os seus pequenos e delicados pés tocavam o chão como se caminhasse sobre nuvens fofas. Olhava em frente, segura dos seus passos. À sua passagem a luz acendia-se saudando a sua nudez, cumprimentando-a e fazendo-lhe uma vénia, e voltava a esfumar-se, ternamente, depois dessa carícia de amante.

De súbito, estacou. Tombado no chão, um corpo mole a trouxe-mouxe, sem roupas, lembrava vagamente uma figura humana. A sua imobilidade era quase absoluta. Apenas o cabelo cinzento se agitava tenuamente, acariciado pelo ar frio e bafiento que corria ao longo das superfícies do corredor, como bafo da goela de um monstro. Nada mais se via ou percebia. O corredor metálico, o corpo tombado. Imobilizou o olhar naquela forma amorfa caída ao fundo do corredor, lá onde a penumbra reinava ainda. Reconheceu-o. Um rosto doce, suave, belo e pleno de masculinidade surgiu à sua frente saído do fundo da sua memória. A pouco e pouco, como num jogo aquoso jogado numa vidraça batida pela chuva, ao rosto juntou-se o cabelo escuro, o pescoço forte, os ombros altivos, o busto rijo de peitorais pétreos, o tronco do qual saíam dois braços apolíneos e ancas taurinas feitas para o amor carnal, assentes sobre pernas espessas, projectadas como colunas. Todo aquele corpo que agora evocava se assemelhava a um templo marmóreo. Marmóreo mas efémero. E, como se um pingo tivesse caído na superfície do lago calmo que era o espelho da sua memória, a imagem desapareceu bruscamente. Piscou os olhos e retomou a marcha. Agora com passadas mais rápidas e enérgicas. Rapidamente chegou junto do vulto caído. O silêncio era agora mais profundo.

Estacou junto dele de braços caídos. O seu olhar procurou os olhos dele, meio ocultos pelo rosto tombado sobre a face direita. Tinha os olhos fechados e estava completamente imóvel. Mas não como um ser fenecido. Parecia antes que dormia serenamente. E por isso ela não se sobressaltou nem chorou. Simplesmente acocorou-se num descer lento, suave, com a leveza de uma pena que cai planando até ao chão. Estendeu a alva mão de menina na direcção do rosto dele e, sorrindo ligeiramente, acariciou-o com as costas dos dedos. O rosto dele estava frio como gelo. Era como feito de pedra. Não transmitia calor algum. Apenas a rigidez dura de rocha sólida. Ela não estremeceu sequer, ante aquele contacto intemporal. Pousou o joelho direito no chão e deixou-se ficar acocorada de braço estendido, mão no rosto dele, olhando-o ternamente. O tempo parecia ter parado. Durante uma pequena fracção de eternidade. Até que aconteceu.

Aconteceu de novo. Um som de trovão ribombou e repercutiu-se pelas paredes parecendo abalar as mais profundas estruturas. O troar atingiu-a. Ela sentiu a cabeça andar à roda, sentiu-se desfalecer. Entreabriu os lábios como se quisesse dizer algo mas não teve tempo. Perdeu a consciência e tombou para o lado. Por estranho acaso caiu de tal forma que o seu corpo ficou deitado ao lado do corpo dele, com o braço a abraçá-lo por sobre o tronco. De novo se fez um silêncio absoluto. De novo o espaço e o tempo pararam e imobilizaram-se.
E, de novo, assim foi durante milénios.

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