30 março 2005

eu escrevi um livro

Em Maio de 1998 organizei para publicação em livro um conjunto de estórias escritas no período entre 21 de Abril de 1993 e 11 de Maio de 1998. A este livro dei o título, na altura provisório, de LENDAS TECNOLÓGICAS.
Era um conjunto de 48 estórias de diverso teor, mas no essencial relacionadas com a actualidade, e de um modo geral procurando explorar o non-sense pelo qual tenho especial carinho.

Entretanto, como muitas eram apenas esboços ou simples ideias e careciam de desenvolvimento, fiz uma selecção através dum crivo mais 'apertado', de que resultou uma maqueta datada de Março de 2000. Esta é constituída por 18 prosas, que na altura considerei acabadas e publicáveis, organizadas numa ordem não cronológica. Como Designer Gráfico e Ilustrador que sou, concebi o volume e fiz a paginação, incluindo a capa. Estava tudo pronto. Como se diz em gíria, era 'atar e pôr ao fumeiro'...

Mantive o título que tinha já adiantado, LENDAS TECNOLÓGICAS, e avancei no sentido de conseguir a publicação do mesmo. Procurei apoio da Autarquia onde resido, que amavelmente me respondeu que não editavam ficção, apenas obras relacionadas com a história do Concelho, mas que apoiavam qualquer edição que eu fizesse mediante a aquisição de um certo número de volumes para colocarem nas bibliotecas. Isto era economicamente manifestamente insuficiente para suportar uma edição. No entanto, mesmo assim, pensei numa edição de autor. Neste sentido pedi a um editor meu amigo que me elaborasse um orçamento com os custos de uma edição com as características que eu pretendia. Ainda estou à espera do orçamento...

O tempo foi passando e eu não parei de escrever. Sempre mantendo a mesma ideia. Os textos que fui escrevendo, iam-se enquadrando no espírito das LENDAS e estas foram crescendo, crescendo, crescendo... Presentemente contam com cerca de 150 textos, entre estórias acabadas, estórias começadas e por acabar, esboços, simples ideias para estórias, registos sob a forma, nalguns casos, apenas duma pequena frase que sintetiza a essência da ideia, etc.

Num terceiro movimento do projecto inicial, fundi-o com um outro projecto, de âmbito filosófico, titulado O FILÓSOFO ETERNO. Isto deu origem a um esboço de um livro muito mais ambicioso, com uma componente de ficção e outra de reflexão. A aparente contradição e despropósito desta ideia desaparece perante o facto de que as estórias das LENDAS, apesar de ficção, terem sempre uma raiz filosófica e serem frutos de uma reflexão permanente sobre o Homem e o Mundo.

Neste momento, estou muito mais voltado apenas para a ficção, e com vontade de não-ter-vontade-para-filosofias. Por isso, não sei que destino irá ter este projecto de livro 'filosofia-ficção'. Provavelmente nunca o publicarei. Contudo, agradam-me as LENDAS e tenho uma certa mágoa por não as ter ainda publicado.

Assim, decidi pegar no projecto inicial e publicá-lo aqui. Talvez estas estórias nunca vejam o papel, nunca sejam guardadas numa estante, nunca andem num bolso ou nunca durmam sobre uma mesa de cabeceira...
Resisto à tentação de 'mexer' nos textos e reescrevê-los. Nomeadamente à tentação de substituir algumas palavras por mim inventadas e que não existem no nosso léxico. Elas têm uma razão de ser e a minha escrita continua hoje a ter a mesma característica. Faço apenas uma revisão e correcção ortográficas. Estão como na altura em que os quis publicar.

Entrego-os ao éter virtual.

quem sou eu?

Olho os meus olhos. Aquele olhar, por vezes duro e lampejado de crueldade maligna e gelada como a neve nevada, outras vezes doce como a pele glabra dum recém-nascido, é reflectido pelo espelho com uma acutilância incredível. Perfura-me as pupilas. Numa bioquímica feroz, como um animal selvagem, rasga-me os nervos ópticos, invagina-se neles furiosamente e com uma raiva taurina crava-se-me no cérebro. Então, vejo-me claramente. Uma negra negritude pesada, densa, eterna e infinita, sem espaço e sem tempo... Uma luminosidade crescente... A encher o todo... A preencher revolteante o continuum espácio-temporal... Aquela fornalha imensa... Aquele explodir de galáxias e de estrelas e de cometas e de planetas e de asteróides e de nuvens de gás e poeira e de bolas de fogo... Aquele... cosmos... cosmos? cosmos caótico... caos cósmico... ordem, desordem... Aquele caos... Sim, aquele caos... É caos que me olha! O universo é caos! O caos é a essência do universo! Eu sou caos! Tu és caos! Nós somos caos! Mas essa coisa a que chamam Estado é cosmos, é a desordem da ordem... Toda a ordem é arbitrária, porra!... Se for verdade... Tenho que espalhar a notícia reinventada, dizer a toda a gente!

Núzinho em pêlo! Estou em pé e com a roupa que Zeus me deu. Os braços tombados ao longo do corpo e a cabeça caída para a frente, mirando com o olhar deslavado outras cabeças. Mexo-me, levanto lentamente a cabeça e os meus olhos descrevem um arco grave, circunspecto, penetrante, de um lado a outro. Conto três paredes baixas, grotescas e incolores à minha volta. Paredes ocultas em corpos que até parecem humanos, uns fardados outros também. Podem estar bem dissimuladas para alguém mais distraído mas vejo bem que são paredes, não são homens. Todas me fitam e acusam e todas me sorriem estupidamente na cara. Paredes estúpidas e hipócritas! Miro-as de alto a baixo, medindo-as com cuidado, tentando não mostrar nem medo nem surpresa. Sei porque estou ali. Mas devo com certeza ter feito figura de palhaço, pois o sorriso idiota e cínico delas transforma-se numa gargalhada uníssona que me esmaga pelo excesso de maldade. É humilhação a mais. Não o suporto. Fecho os olhos, cerro as maxilas, aperto os dedos das mãos e escarro-lhes naquelas trombas de filhas da puta! Espancam-me quase até à morte!

Sobe a escada suja de madeira velha a cheirar a mofo, com o labrego atrás a apalpar-lhe lascivamente as nádegas roliças, a dizer frases obscenas: ‘Vou-te fazer e acontecer...’ e a arrotar álcoois a pedirem para serem vomitados. Abre a porta, que range lugubremente no silêncio da noite cúmplice. Não demora muito tempo, como é hábito. Despe-se, deita-se sobre o leito mal amanhado e abre as pernas, expondo a flor húmida e vermelha como uma planta carnívora prestes a devorar um insecto cretino. O labrego começa a despir-se. Mostra-se. É mesmo um insecto, escamoso e repelente. Não tem uma cor uniforme. Algumas zonas do seu corpo, brancas, parecem ter sido metidas em lixívia, outras, vermelhas, esfregadas com alcatrão a ferver. Por fim, tira as cuecas, que devem ter servido para fazer café de saco tão grande é a profusão de borras. Lambe as beiças clericais, dirige-se à cama e ajoelha entre as pernas dela. Deve ser cavador, com certeza, pois antes de agarrar o membro túrgido e erecto cospe na mão, esfregando-o depois com a mão ensalivada. Se calhar é para amaciar os calos. Pouco há a dizer do que acontece depois. É o normal. Cavalga, resfolega, sua, grita, ejacula. Em suma fornica. Mas primeiro, paga. Tudo tem um preço!

01h55m da madrugada. O bar está deserto. Bem, para ser franco, não é verdade. Estão cá dois bichos. Bichos, disse eu, não disse bichas! E mesmo que tivesse dito bichas? Antes bichas que bichonas. Ou pior ainda, bichanos ou bichinhos. Adiante. A verdade é que não há mais ninguém no bar além destes dois animais. E o saxofone de Charlie Parker a vibrar, escorrendo liquidamente pelas paredes em sonoridades macias com cheiro a sexo húmido. Ela, com uma energia nocturna, fremente, esfrega o tampo do balcão com um trapo que certamente já viu melhores dias. Os seus lábios generosos seguram um marlboro meio consumido mas ainda pleno de erecção. Os seus seios agitam-se numa dança alucinante como balões prestes a rebentar, ameaçando evadirem-se daquele tarrafal ao qual um porco chauvinista de algodão amarelo e alças os condenou. O seu corpo, espesso e carnudo, faz pensar, não nos melhores dias que já viu, mas nos óptimos dias que tem para ver. Eu, sentado a uma mesa, abano suavemente a cabeça e acompanho a música com o bater do pé dando, de tempos a tempos, um gole no jack daniel’s que dança no copo que tenho à minha frente. Seguro entre os dedos um sg filtro, que chupo com avidez de vez em quando, inundando o meu rosto suave com um clarão rubro, demoníaco, que viola ostensivamente o meu ar aparentemente angélico. Pareço nervoso, ou talvez ansioso, pois mexo frequentemente no zippo. Pego-lhe, abro a tampa, acendo-o, fecho a tampa, volto a pousá-lo muito direito à minha frente, junto ao maço de tabaco, sempre no mesmo sítio, de forma metódica, calculista, estudada. Porquê esta ansiedade anacrónica? Sei os nomes de todos aqueles temas de Parker: Bird’s Nest, o meu cantinho... How High The Moon, bela e perigosa... Cool Blues, é assim a vida...
O bar fechou e saímos os dois. Ponto final?

a máquina que zumbia

O dia estava cinzento como há muito não se via. Um tecto de nuvens escuras corria rapidamente transportado pela brisa. As nuvens pareciam acariciar as colinas que flanqueavam o pequeno vale acastanhado. Acastanhado porque lhe faltava a água que o tornaria florescentemente verdejante. Sebes de silvados ressequidos rodeavam a quintinha de rectângulos terrosos, desenhados a régua e esquadro. Rectângulos de terra a aguardarem, a pedirem, serem rasgados pela vida vegetal.

No alto do monte a máquina zumbia como um enorme zângão. A sua antena parabólica virada para o céu emitia a energia que a fazia zumbir. Em volta da máquina o homem, com um desbotado fato-macaco vermelho, mexia-se atarefado como uma formiga de ganga. Rapidamente, correndo de um lado para o outro lia mostradores e accionava interruptores e manípulos cujos segredos só ele conhecia. O dia acinzentava-se cada vez mais. A máquina não parava, assim como o homem de ganga. Bruscamente caiu a primeira gota de água. O homem sorriu com evidente prazer e continuou na sua estranha tarefa. Pouco depois caiu a segunda gota, depois a terceira e por aí fora. Não tardou que uma grande chuvada se abatesse sobre toda aquela área alimentando o solo sedento e ressequido que a absorveu ávido. A água, vital à vida como o ar, inundou os campos alimentando as plantas e sobretudo alimentando as sementes. Só então o homem se deu por satisfeito e pondo a máquina a funcionar em automático voltou costas e retirou-se, descendo a ladeira pelo caminho pedregoso que conduzia à pequena casa, lá em baixo no vale junto ao ribeiro agora engrossado pela chuva.

o banco do jardim solitário

Sentada no banco do jardim, recostada, as pernas cruzadas, a jovem mulher modestamente vestida olhava em frente parecendo esperar alguém. O banco era um banco magnífico, num jardim maravilhoso. Todo em fibra de carbono tinha mecanismos computorizados de ajuste ergonómico e adaptava-se fisicamente ao peso e à configuração do corpo de quem se sentava nele. O presidente da câmara não se poupava a esforços, nem poupava o dinheiro dos contribuintes, para lhes proporcionar o que de melhor a técnica tinha concebido. Podiam não ter mais nada, mas tinham jardins!
A jovem mulher, de um pacote colorido que segurava na mão, retirava palitos de batata frita que levava à boca com um pequeno garfo de plástico. Mastigava com evidente prazer, saboreando cada palito como se este fosse um objecto sexual. Quando acabou de comer amachucou o pacote e atirou-o para o caixote do lixo ao lado do banco. Com um 'blorp!' e um 'pfff!' o caixote tragou o pacote e os seus mecanismos internos de reciclagem vaporizaram o material soltando uma pequena nuvem de vapor de água no ar. A jovem mulher fixou o olhar em frente e ali ficou naquela imobilidade de quem espera e não desespera.
Foi sem qualquer sinal de aviso, sem qualquer grito de dor que o seu corpo se começou a desfazer. Amoleceu como se feito de cera e começou a abater sobre si mesmo. A sua carne e os seus ossos liquefizeram-se, transformando-se numa pasta escura de aspecto sanguinolento que escorreu para o chão pingando e formando uma poça debaixo do banco. A roupa, vazia de um corpo, tombou nas tábuas do banco e apodreceu desfazendo-se em pó rapidamente como se por ela de súbito tivessem passado vinte séculos e desapareceu levada por uma aragem fria que tinha vindo com o entardecer. Da jovem mulher que comia batatas fritas sentada no banco do jardim sobrou apenas aquela poça debaixo do sítio onde ela tinha estado, poça que mesmo ela não ficou ali por muito tempo. O jardineiro tinha chegado arrastando a mangueira atrás de si para regar os canteiros, mantendo vivas as plantas. Começou a regar os canteiros com grande cuidado e atenção, e reparando na poça avermelhada sob o banco dirigiu para ela o jacto de água, que arrastou aquela pasta, o que restava da jovem mulher que comia batatas fritas sentada no banco, para a sarjeta de mistura com batatas que tinham caído no chão e algum lixo que escapara à passagem da vassoura.
E assim, solitário, ali ficou o banco do jardim.

ai que bem que se está no campo!

Ai que bem que se está no campo! Pensou Cipriano, estendido na relva macia à sombra de um enorme castanheiro junto à margem do riacho.
Este corria manso serpenteando pelo campo fora sob um céu muito azul. Cipriano fechou os olhos com a óbvia intenção de dormir. Enquanto se sentia afundar na sonolência, ouvia o riacho murmurar nas pedras, sob o esvoaçar de pequenos passaritos que piavam em coro com os grilos, o que ajudou a embalá-lo no sono. Adormeceu em sossego. Dormiu algum tempo. Acordou com o som de um besouro alarmante. Era o seu relógio de pulso, que Cipriano tinha ajustado para o alertar ao fim de duas horas. Levantou-se, sacudiu as pernas endireitando as calças, ajeitou a camisa e a gravata, vestiu o casaco e, passando por trás da árvore, entrou num corredor fracamente iluminado semi-oculto por uma moita de silvas.

O corredor conduziu-o a um cubículo cinzento com cartazes coloridos nas paredes e um guichet onde se lia "Campo, Marcações e Pagamento". Acercou-se do guichet e estendeu o seu cartão de crédito à jovem empregada exageradamente maquilhada que rapidamente efectuou o pagamento e lhe devolveu o cartão juntamente com uma factura e recibo, despedindo-se sorrindo, com um: Bom dia e volte sempre!
Cipriano, ao mesmo tempo que guardava os papéis na carteira, despediu-se também e saiu do edifício para a rua onde, no parque de estacionamento, o seu carro o esperava. Entrou no carro e arrancou perdendo-se rapidamente no trânsito asfixiante da cidade, em direcção ao seu local de trabalho e deixando para trás aquele enorme edifício cinzento de ferro e cimento, permanentemente envolto numa neblina fétida.

Amanhã voltaria outra vez ao Campo porque afinal... ai que bem que se está no campo!

o brinde

Em grande excitação o garoto andava aos pinotes à volta da mãe aguardando que esta abrisse finalmente o pacote de cereais e ele pudesse ver o tão almejado brinde. Brindes que aqueles pacotes sempre traziam dentro, para gáudio da miudagem e desespero dos pais, confrontados na hora das compras com os insistentes apelos dos filhos à compra daqueles pacotes de cereais.

A mãe acabou de abrir o pacote, introduziu nele a mão e retirou uma pequena cápsula de acrílico com uma forma escura dentro. Pousou o pacote sobre a mesa e pegou no microchip que acompanhava a cápsula. Introduziu o chip no leitor ligado ao computador de gestão doméstica que tinha incrustado na parede sobre a bancada. No écran surgiram de imediato as instruções de manuseio. Leu-as cuidadosamente. Dirigiu-se ao lavatório, abriu a torneira de água fria, abriu a cápsula, retirou para fora a pequena forma escura e mergulhou-a debaixo de água com cuidado. Com o efeito da água e de acordo com as instruções a pouco e pouco a pequena forma escura alterou-se. Começou a aumentar de volume, crescendo rapidamente a olhos vistos e mudando a sua forma começou a revelar a sua natureza. Acompanhada dos gritos de excitação do catraio e os ohs de admiração da mãe a forma escura parou de crescer.

Mãe e filho tinham agora perante eles uma magnífica cria recém-nascida de um rafeiro alentejano que latia dando pequenos saltos e procurando sair do lavatório! Uma proeza da liofilização biónica transgénica! Desta vez os cereais tinham oferecido um cão. O mês anterior tinham oferecido um casal de periquitos.
Qual seria a próxima oferta? Interrogava-se o garoto, contente, abraçando com ternura o seu novo companheiro de brincadeira.

o homem e o televisor

O dia não estava convidativo para sair. Era uma pena porque era domingo, dia de folga para a maioria dos trabalhadores e também para os desempregados que viviam do rendimento mínimo.
Dias que ele habitualmente usava para ir à pesca com um amigo, num dos pesqueiros artificiais, com peixes cibernéticos, distribuídos por locais onde antigamente, segundo os historiadores, ficavam as margens de um rio chamado Tejo. Naqueles pesqueiros, por uma pequena quantia, podia-se passar algumas horas à pesca. O único inconveniente é que os peixes eram cyborgs, organismos cibernéticos, artificiais, impossíveis de comer. Também quem é que era capaz de comer o cadáver de um ser vivo como os nossos antepassados faziam? Nestes dias estava tudo facilitado com comida confeccionada em fábricas asiáticas! Comida higienicamente fabricada, perfeitamente sintetizada, absolutamente nutritiva. Recomendada pela Defesa do Consumidor e pela Saúde Pública. Assim, era necessário devolver os peixes pescados à saída com risco de uma pesada multa para os infractores.

A chuva caía copiosamente lá fora, ácida, destrutiva, corroendo tudo em que tocava e que não estivesse protegido por protectores anti-chuva ácida. Protectores que eram o último grito dos ecologistas, naturistas, floristas, budistas, maoístas, nudistas, e outros verdistas. Eram vendidos a preços acessíveis nas grandes superfícies e adaptados para qualquer utilização. Eram uma espécie de guarda-chuvas muito flexíveis, de tamanhos variáveis e feitos num material não corruptível. Eram ainda cem por cento recicláveis. Ele tinha dois na varanda. Um a proteger a cama do gato, o qual em todo o caso não andava à chuva fosse ela ácida ou não... e o outro a proteger um vaso com um cacto verdadeiro, uma preciosidade.

Vendo pela janela que chovia, ainda em pijama, sentou-se no sofá da sala apesar de ter acabado de se levantar. Com o telecomando ligou a televisão e seleccionou, de entre os oitocentos e setenta e seis canais disponíveis, o seu canal preferido. O FatelaTv Channel, o canal das telenovelas. Um canal que transmitia exclusivamente telenovelas, ininterruptamente, durante 24 horas.
Recostou-se para trás deliciando-se, ingenuamente, com as imagens estereotipadas e os diálogos idiotas da telenovela virtual uruguaia, montada em chileno, dobrada em mexicano, redobrada em argentino e legendada em norueguês, que estava a passar naquele instante. Tivera sorte. Era o primeiro episódio de uma nova. Assim poderia seguir a história desde o princípio!

tudo tem um preço

O dia estava quente e no céu não se via nem uma nuvem. Havia na atmosfera uma serenidade apenas quebrada por uma subtil sensação de que algo estava para acontecer.

Sentado na berma da estrada, à sombra de um chaparro, enquanto aguardava o regresso da equipa de biólogos do instituto que se tinha embrenhado pelo campo fora para fazer um levantamento dos níveis de mercúrio no solo, o homem olhava com atenção a enorme ave que pairava lá no alto por cima da agreste e seca paisagem alentejana. Com aquele perfil e aquele modo de voar... era sem dúvida uma águia. Com as imensas asas abertas, desenhava círculos largos, lentamente, com certeza procurando com o seu olhar acutilante alguma presa no solo. Talvez algum pequeno roedor a quem ou os deuses ou o destino tivessem determinado que hoje seria o seu fim.

Mas algo de estranho acontecia, a menos que os olhos o estivessem a enganar. Parecia-lhe ter visto uma pequena hesitação no voo da águia, como se a ave estivesse ferida e tivesse dificuldade em coordenar o bater das asas. Mas ferida só se fosse por causas naturais pois ninguém se atreveria a usar uma arma. Há alguns anos que a posse e uso de armas, mesmo as de caça, assim como a própria caça, estavam formalmente proibidas em todo o território nacional desde que os ecologistas tinham chegado ao poder. O homem continuou a contemplá-la. Não havia dúvida. A ave batia as asas de uma forma algo descontrolada e rodopiava no ar começando a perder altitude. Viu que a ave batia as asas num desespero cada vez maior numa vã tentativa de se manter no ar e que tombava rapidamente. Resolveu ir ver o que tinha acontecido com a águia e se seria possível fazer alguma coisa. Dirigiu-se ao pequeno morro atrás do qual a ave se tinha despenhado. Passou o morro e viu-a, tombada a poucos metros, imóvel. Aproximou-se.

Ao chegar ao pé da ave caída no solo e à medida que se ia aproximando do corpo dela ia-se também apercebendo da realidade. A águia não era verdadeira. Não era um animal natural. Tratava-se de um cyborg, um organismo cibernético, autónomo e animado, maravilhosa proeza da ciência e da técnica que naqueles imensos campos tinha feito renascer para gáudio dos visitantes aquele animal magnífico, para sempre extinto!

assim acabou mais um dia

Fim do dia. O homem tirou o cartão electrónico do bolso e meteu-o na estreita ranhura da fechadura. O microprocessador desta fez a leitura do chip e reconhecendo as informações neste contidas fez com que a fechadura se destrancasse, permitindo ao homem abrir a porta.

O homem guardou o cartão no bolso, entrou e a luz do aposento acendeu-se, accionada pelos automatismos escondidos, mostrando-lhe o quadro habitual: a enorme mesa de mármore negro no meio da sala; os sofás de pele verdadeira que lhe tinham custado uma fortuna, devido às leis de protecção das espécies animais, que o obrigaram a procurá-los no mercado negro onde tudo se comprava desde que se tivesse o dinheiro suficiente; frente a estes a pequena mesa de vidro sobre a qual o aguardava a habitual garrafa de jack daniel's e um copo já com um cubo de gelo de acordo com as instruções que dera à empregada, instruções para execução permanente; na parede em frente, fixo a esta, o enorme écran que o ligava a todo o lado, a toda a gente, através da galaxynet. Sentou-se no sofá, deitou a quantidade certa de bourbon no copo, recostou-se para trás e através do comando remoto ligou o écran, seleccionando um canal de notícias.

Quando acabou aquele seu momento de relaxe diário, dirigiu-se ao quarto onde a mulher estava já a dormir. Despiu-se e meteu-se na cama morna. Sentindo-se excitado, sentindo o seu membro crescer e endurecer ficando túrgido de desejo, talvez devido à lembrança do corpo fantástico, soberbo de contornos redondos, de nádegas fartas e seios imensos e generosos daquela jovem colaboradora nova que tinha entrado hoje ao serviço lá na agência voltou-se para a mulher que respirava suavemente ao seu lado. Pegou de novo no seu cartão electrónico e introduziu-o na ranhura oculta na nuca, na base do pescoço sob o cabelo lindamente dourado da sua jovem companheira a qual abriu imediatamente os olhos, fitou-o sorrindo voltou-se de costas e abriu as pernas dobrando-as pelos joelhos e ficando serenamente à espera que ele a penetrasse.

Assim acabou mais um dia.

Alice e o seu maravilhoso país

Aquele país sobrevivia sozinho no panorama económico mundial. Era um dos poucos que não fazia parte de nenhuma federação económica continental depois do grande e histérico boom federativo que levara a maioria das nações do planeta a organizarem-se em comunidades económicas, verdadeiras federações de estados submetidas a poder central na respectiva federação. Mas não se pretendia ficar por aqui. Os economistas, tecnocratas que procuravam por todo o lado influenciar ou mesmo conquistar o poder, procuravam a passos largos o caminho para uma federação mundial, a sua grande ambição, o seu grande sonho. Mas aquele país tinha resistido pois não abdicava do seu passado que fora afinal uma luta constante, permanente, mortífera e sanguinária pela independência nacional.
Nele também os tecnocratas tinham dominado o poder mas, apesar de terem enchido o território com uma trama de auto-estradas, pontes, túneis e viadutos, acabaram por ser expulsos e declarados inimigos-públicos-número-um. Ninguém queria voltar a ver os tecnocratas no poder a venderem a independência nacional a qualquer preço. Na sua passagem o sector produtivo tinha sido desmantelado, a educação e a saúde arrasadas. Isto durou até os maduros terem conquistado o poder com a queda dos tecnocratas e estarem a tentar tapar os buracos que estes tinham aberto. Apesar destas guerras e da degradação da qualidade de vida, continuavam a ter bastante sol em imensas praias ultra poluídas e era possível viver convencido de que tudo estava bem, beber uma imperial a acompanhar um pratinho de caracóis e enfrascar-se à noite na discoteca, que era o que almejava uma grande parte da juventude.

Era neste maravilhoso país que vivia Alice. Habitava um pequeno mas bonito apartamento num 54º andar de um prédio-dormitório na periferia da grande cidade, do outro lado do rio. Tinha televisão por cabo com 800 canais, computador com ligação à velha mas ainda útil internet, a qual cobria todo o planeta e era conhecida na gíria por ‘a rede dos pobres’ porque quem tinha dinheiro utilizava a galaxynet, a rede com ligação instantânea a qualquer planeta da Galáxia e a qualquer nave, mesmo em trânsito desde que a mesma se encontrasse dentro de um raio de duzentos parsecs. Tinha também cozinha bem equipada, até micro-ondas tinha. E a renda não era nada cara, pouco menos de 3/4 do salário dela. Ali vivia Alice um terço do seu tempo. O resto passava-o a trabalhar ou enfiada nos transportes colectivos, a caminho do emprego, numa empresa bancária, ou regressando a casa. Em redor do prédio e envolvendo-o completamente havia um jardim relvado com bancos de design moderno, repuxos coloridos e sanitários para cães, gatos e iguanas. Alice tinha um sonho. Mudar para um apartamento maior, mais moderno, melhor equipado, com televisão por cabo com 900 canais e dois micro-ondas na cozinha. Mas as rendas exorbitantes tinham até agora impedido que tal se concretizasse.

Naquele dia, Alice tinha conseguido chegar a casa mais cedo do que era habitual. Também, saíra mais cedo do emprego com a desculpa de que tinha que levar o peixinho vermelho ao veterinário porque o achava pálido, cor-de-rosa, e com pouco apetite. Era o único ser vivo que com ela partilhava o apartamento. Um peixe vermelho de água doce, comodamente instalado, sobre o móvel da cozinha, num aquário redondo. Alice abrira a porta e entrara atirando com a bolsa para cima do sofá e atirando os sapatos para um canto com dois pontapés no ar. Dirigira-se à cama e deixara-se cair de bruços sobre esta, adormecendo mal tocara na coberta. Dormiu bastante tempo. Acordou com a campainha do vídeo-telefone instalado na sala. Levantou-se para atender, espreguiçou-se e dirigiu-se à sala. Mas não chegou lá, apesar de ter passado a porta. Reprimiu um grito. O lugar onde se encontrava não tinha nada a ver com o seu apartamento.

Ao passar a porta sentira um súbito esfriar à sua volta e a luz desaparecera escurecendo de repente. Estava num espaço enorme, gigantesco, escuro e frio. Tanto quanto lhe permitia ver a pouca luminescência presente de origem indeterminada, olhando em todas as direcções não havia fim. O primeiro impulso foi dar um passo à retaguarda mas isso não produziu qualquer efeito. Continuou naquele lugar estranho e assustador sem saber como lá fora parar e sem saber como sair. Começou a deambular sem sentido, tendo apenas cuidado com os sítios onde punha os pés. Mas o chão não apresentava obstáculos visíveis. Era uma imensa superfície negra ligeiramente brilhante perfeitamente plana e semelhante a plástico. Andava já há bastante tempo começando a ficar cansada quando sentiu que a temperatura se alterava. O frio transformava-se em calor, por enquanto suportável. Por enquanto, porque a temperatura não parava de subir, se bem que essa subida fosse lenta. O seu cérebro trabalhava a duzentos e os seus olhos mexiam-se em todas as direcções procurando compreender o que lhe acontecera e tentando localizar uma saída. Tanto andou que se apercebeu a pouca distância de um clarão avermelhado. Um pequeno clarão vermelho a cerca de dois metros do solo.
Aproximou-se e à medida que o fazia começou a perceber que o clarão pertencia a um letreiro com uma palavra luminosa. Quando estava já bem perto conseguiu ler o letreiro. Dizia ‘EXIT’. Por baixo deste uma barra horizontal indicava uma saída de emergência. Correu para ela e empurrou com força a porta de metal escuro apoiando as mãos na barra. A luz cegou-a momentaneamente e fechou os olhos quando passava a porta. Ouviu esta bater com estrondo atrás de si. Com medo abriu lentamente os olhos.

Estava no exterior. Sentia o ar fresco acariciar-lhe o rosto. Olhou em redor, lentamente. A porta tinha desaparecido e Alice encontrava-se agora numa magnífica praia junto ao mar, com os pés a enterrarem-se na areia quente e fofa.
Não se via vivalma e apenas se ouvia o marulhar do mar e o rebentar constante das ondas. Voltou-se e afastou-se mais para cima, onde se sentou numa laje de rocha. Alice ali ficou, sem pressa, sentada a contemplar o mar muito azul sobre o qual alegres gaivotas volteavam em busca de comida ou talvez apenas pelo prazer de voar. Acabou por se recostar e fechou os olhos sentindo o calor do sol. Inevitavelmente adormeceu. Acordou com a campainha do vídeo-telefone.

Levantou-se estremunhada. Estava no quarto e tinha adormecido sobre a cama. Que raio de sonho! Ainda zonza, dirigiu-se à sala para atender a chamada mas parou atraída por um brilhozinho no chão. Pensou que fosse algum fragmento de vidro e baixou-se para o apanhar.
Areia, era um grãozinho de areia!

recordações de um velho viajante das estrelas

Hoje, cada vez mais perto do fim da vida, a pele antes lisa e brilhante agora enrugada e flácida, os olhos esforçados começando a falhar, vergado pelo peso dos anos, cansado, velho viajante das estrelas, recordo com saudade, por vezes mesmo com um pouco de amargura, o tempo em que descer num qualquer planeta desconhecido era algo que eu fazia com um frémito de emoção a percorrer-me o corpo como se de um encontro de adolescente se tratasse.
A descida, por vezes violenta, em solos desconhecidos e traiçoeiros, a saída da nave encerrado no meu escafandro, simultaneamente prisão e protecção, felizmente para mim até hoje nunca esquife, o corpo a tremer, os primeiros movimentos, lentamente, tacteando, passo a passo, com grande cuidado, procurando identificar qualquer perigo mas apreciando também as visões maravilhosas que muitas vezes se desenrolavam diante dos meus olhos, padrões e movimentos inacreditáveis, cores fantasticamente inimagináveis, infernos imensos, fornalhas abrasadoras, autênticas fontes de vida cósmica. A sensação grandiosa e assustadora, o privilégio, de estar a assistir ao nascimento de universos, a big-bangs, eternos recomeços da grande roda do existir, visões da eternidade, encontros com Ele.
Assim percorri desbravando durante uma vida inteira toda a Galáxia para que hoje os seus caminhos sejam conhecidos e seguros para os viajantes actuais, e para os milhões de colonos que saídos da Terra se espalharam pelos planetas mais promissores, novos mundos, novas índias e novas américas. De entre todas as descidas que fiz ao longo da minha vida de explorador estelar recordo com prazer mas sempre com um gélido arrepio de estranheza pelo que teve de fantástico, de irreal, de surrealista, a descida que fiz em Hermes.
Ainda hoje me interrogo sobre o que verdadeiramente aconteceu, e que guardei para mim não tendo comunicado nada nos relatórios, até porque o Governo Terrestre desinteressou-se completamente em relação a Hermes não tendo efectuado nenhuma acção posterior para a sua colonização, ficando o seu segredo guardado para sempre. Não se sabia nada a respeito desse planeta pois um manto permanente de nuvens impedia a observação visual directa e os seus fortes campos magnéticos causavam enormes interferências nos instrumentos das sondas pelo que a solução era efectuar uma descida directa no planeta. Foi essa a ordem que recebi quando me encontrava a meio caminho de Aldebaran e assim dirigi-me rapidamente para Hermes. Posta a nave em órbita estacionária, instalei-me no módulo de descida e accionei os comandos.
O computador entrou em funcionamento e o módulo soltou-se entrando em queda livre em direcção à superfície ainda desconhecida de Hermes. As nuvens de vapor sulfuroso envolviam o módulo e tornavam-se cada vez mais densas à medida que vertiginosamente descia com a estranha sensação de que nesta descida havia algo que a ia tornar bastante diferente das outras e que eu iria ficar para sempre marcado. Contudo, não era uma sensação de tragédia mas antes uma sensação de ir penetrar noutra dimensão existencial. Noutro universo. Os travões foram automaticamente accionados pelos sistemas de navegação e o módulo pousou suavemente na superfície de Hermes, não sem antes se ter inclinado ligeiramente a bombordo fruto de uma provável cedência do terreno sob o peso das sapatas de aterragem. Feitas e registadas as primeiras análises e medições à atmosfera e ao solo pelos sistemas automáticos chegou a altura de sair.
Abri a escotilha pela qual nuvens de vapor voltearam e penetraram no módulo e sai para o exterior. O vapor amarelo formava um nevoeiro cerrado à minha volta envolvendo-me como uma estranha mortalha. Decidi em que direcção iria avançar após analisar as imagens sobre a topografia do terreno em que me encontrava. Uma cadeia de altas montanhas a poucos quilómetros, destacada da imensa planície pedregosa despertou o meu interesse e foi nessa direcção que resolvi avançar. Guiava-me por instrumentos pois a visibilidade era praticamente nula. Ao chegar às faldas da montanha piramidal deparei com um túnel imenso que penetrava profundamente na montanha e afoitamente entrei pelo túnel pois este certamente iria conduzir-me a algum lado e eu estava cheio de curiosidade.
A iluminação do meu capacete permitia-me avançar, e os instrumentos iam-me fornecendo informações constantes. A minha surpresa começou com a diminuição da densidade da névoa à medida que eu avançava pelo túnel e com as informações dos instrumentos que me indicavam que a composição da atmosfera se ia também modificando assemelhando-se muito à atmosfera da Terra numa região temperada, sendo assim perfeitamente respirável para mim. O receio e a cautela contudo fizeram com que eu conservasse o meu escafandro vestido. Tinha já avançado bastante pelo túnel quando este acabou bruscamente e a intensa luz do sol local me envolveu e momentaneamente me cegou.
Quando consegui de novo ver, o meu espanto foi indescritível. A imagem que me rodeava parecia uma impossibilidade. Encontrava-me num jardim verdejante pleno de relva e árvores floridas como se estivesse de novo na Terra. Mas eu sabia que estava em Hermes e aquilo tinha que ter uma explicação. Talvez a montanha envolvente provocasse uma bolsa atmosférica do tipo terrestre em que espécies vegetais do mesmo género se tivessem desenvolvido num estranho processo evolutivo e selectivo paralelo, a milhares de anos-luz do planeta azul. A verdade é que eu estava ali e era uma testemunha privilegiada da existência daquele local idílico, que certamente algumas pessoas mais crentes não hesitariam em considerar o Céu. Percebendo que não existia qualquer perigo despi o meu escafandro e resolvi explorar aquele estranho, impossível jardim, aquele verdadeiro éden. Assim fui caminhando ao longo de um ribeiro que suavemente murmurava por entre moitas verdejantes e margens de deliciosa relva, envolvido em nuvens esvoaçantes de belamente coloridas e grandes borboletas como eu nunca imaginara que pudessem existir. Em redor a paisagem pouco mudava, árvores por todo o lado proporcionavam magníficas sombras.
Foi com uma grande surpresa, que me fez de súbito estacar, que me apercebi que ao longe e na minha direcção vinha uma figura indubitavelmente humana. Um homem de aspecto idoso. Ligeiramente curvado para a frente, de mãos atrás das costas, vestido com roupas como eu nunca tinha visto mas que me recordavam vagamente imagens dos séculos XIX e XX aprendidas nos livros de história e em alguns velhos filmes de cinema com histórias passadas nesses séculos, caminhava calmamente, com ar meditativo. Quando chegou ao pé de mim parou e fixou-me com um olhar penetrante e interrogativo. Em dinamarquês, eu tinha comigo o meu tradutor universal AppleTranslator, cumprimentou-me apresentando-se:
— Bom dia senhor, permita-me que me apresente. Søren Aabye Kierkeggard. Sabei que Deus existe e está em toda a parte. A prova é que nos encontramos neste local que está em todo o lado e em parte nenhuma. Só lamento não ter ainda encontrado a minha muito amada Regina Olsen, apesar do que tenho caminhado.
E afastou-se, andando ao longo do regato e desaparecendo ao longe. Eu, pela minha parte, fiquei sem saber o que pensar. Que raio de sítio seria aquele? Existiria de facto? Pelo menos eu tinha a certeza que podia nomeá-lo: Hermes, o mensageiro. Sentia a sua essência envolver-me. Vencendo a imobilidade que o espanto causara no meu corpo retomei a marcha. Alguns passos andados eis que novo vulto se aproxima de mim. E de novo, desta feita em alemão, apresenta-se:
— Bom dia senhor, sou Martin Heidegger. Sabei que estou profundamente preocupado com o Dasein, o “ser-aí”. E ainda não o encontrei, nem mesmo aqui. Esse lugar onde o ser se desenvolve e pode ser atingido. A aparência é ocultamento.
E afastou-se, não sem antes me ter recomendado que meditasse bastante sobre a metafísica. Continuei a caminhar completamente estupefacto, e vi sentado na relva à sombra de uma árvore um homem que não precisou de se apresentar pois reconheci-o facilmente pelo seu ar grave, extasiado, de contemplação divina. Era Immanuel Kant. Cumprimentei-o com um aceno de cabeça. Num alemão perfeito dirigiu-me a palavra:
— Estou convencido que a electricidade causa uma doença generalizada nos gatos. E não se atreva a vir-me falar de Lampe!
Ao afastar-me, ainda o ouvi murmurar:
— ... o céu estrelado por cima de mim e a lei moral em mim.
Andei um pouco mais, enebriado que me sentia. Sentia-me como num sonho. Olhava à volta, via com nitidez as ervas, o regato, as árvores, as frescas sombras, mas... Aqueles personagens pareciam-me absolutamente reais, contudo...
— Absolutamente! Diz muito bem! — trovejou outra voz em alemão, atrás de mim. Sobressaltei-me, voltei-me de um pulo e deparei com Hegel. Pois assim se identificou:
— Georg Wilhelm Friedrich Hegel, qual é o espanto? Já que vos atrevesteis a devir até aqui, ficai sabendo que tudo o que é real é racional e tudo o que é racional é real! — e, virando-se bruscamente, afastou-se em largas passadas. Eu, fiquei literalmente a olhar o Infinito!
Depois de todos estes encontros, com a cabeça a rodopiar como uma nave caída num vórtice, rapidamente regressei pelo mesmo caminho à minha nave partindo para outro lugar e não tendo até hoje regressado a Hermes. Será que tudo aquilo foi real ou terei eu sido vítima de alguma alucinação? E tendo sido real como me pareceu, que local seria aquele? Onde está a Prova Ontológica?
Ainda hoje não sei a resposta a nenhuma das questões, mas fiquei convencido duma coisa: A existência precede a essência!

o banho relaxante da rapariguinha

A rapariguinha púbere aproximou-se cantarolando da banheira, abriu a torneira e no painel com visor digital por cima desta marcou a temperatura a que pretendia a água para o banho e o tipo de sais que queria misturados com ela. Despiu-se lentamente expondo um corpo jovem quase infantil de rapariguinha virgem de pele clara como marfim, com seios do tamanho de pequenas laranjas a despontar e ainda sem pêlos púbicos, enquanto aguardava que a banheira enchesse, o que aconteceu com relativa rapidez.

Entrou na banheira e deitou-se dentro desta saboreando a temperatura suave da água, sedosa devido aos sais. Inclinou a cabeça para trás apoiando-a no bordo da banheira e fechou os olhos deliciando-se com a sua música preferida que saía dos altifalantes embutidos no tecto e que tinha programado com antecedência. Perdida em pensamentos prazenteiros de adolescente acabou por adormecer. Acordou com o estrondo da porta da casa de banho a ser arrombada. Assustada e tremendo de medo levantou-se e escorregando tentou tapar-se com uma toalha. Não teve tempo.

O seu corpo imobilizou-se, paralisado, escorrendo água, pingando. A enorme figura metálica de um Robotecope erguia-se imensa à sua frente. O disparo da arma por ele empunhada quase não produziu ruído. O corpo dela, com o impacto do terrível projéctil que lhe acertou em cheio e lhe rasgou o peito, cheio de sonhos de criança, foi violentamente projectado contra a parede com um baque surdo enquanto os olhos dela se esbugalhavam de terror e o corpo escorregava para baixo, para dentro da água, a qual ficou tingida de vermelho.

Mais um potencial criminoso, revelado a tempo pelos testes psicotécnicos periódicos de detecção de ‘tendência-crime’, realizados na escola, tinha sido destruído de acordo com o programa governamental de prevenção da criminalidade: Detectar e Destruir o Criminoso Antes Dele Cometer o Crime!

os relógios e os demónios cornudos

Joaquim levantou-se de manhã à hora habitual. Como era costume apertou a bracelete do relógio em torno do pulso esquerdo. E olhou para o mostrador para ver as horas. Estranhamente os ponteiros estavam parados. Tinha que passar pelo relojoeiro e verificar a pilha.

Dirigiu-se à sala para ver as horas no relógio de parede. No lugar do relógio apenas se via um enorme buraco negro na parede. Buraco do qual se sentia sair uma estranha aragem gélida. Recuou confundido e um pouco assustado. Olhou de novo para o pulso. O relógio tinha desaparecido. Provavelmente caíra mas como teria tal sido possível sem ele dar por isso? Ainda mais estranho e assustador era aquela mancha avermelhada que lhe marcava o pulso no sítio onde estivera o relógio. Mancha que há pouco quando pusera o relógio, tinha a certeza, não existia.

Saiu para a rua e olhou na direcção da velha torre da igreja na qual existia um velho relógio de algarismos romanos que ainda funcionava apesar de estar sempre atrasado cerca de dois minutos. Tal como já esperava, a meio da torre branca no sítio do relógio existia um enorme buraco negro para o qual alguns transeuntes olhavam tecendo comentários entre si.
Joaquim dirigiu-se ao seu carro estacionado no parque frente ao prédio e entrou nele sentando-se ao volante e accionando a ignição pô-lo a trabalhar. Arrancou pela rua fora rapidamente desenfiando-se por entre o trânsito, sempre caótico àquela hora da manhã. Pelo caminho foi observando os sítios onde existiam relógios e em todos eles sempre a mesma situação. Os relógios tinham sido substituídos por enormes orifícios negros junto dos quais se formavam magotes de gente comentando os acontecimentos e dificultando a circulação de veículos e peões. Eram também visíveis algumas equipas de reportagem de rádio e televisão correndo frenéticas, filmando os buracos e entrevistando pessoas. Nem um guarda da PSP de serviço à porta de um banco escapou de ser entrevistado. Enquanto conduzia olhou para o pulso. A mancha continuava no mesmo sítio sem qualquer alteração. Bem, pelo menos não lhe doía nem causava qualquer incómodo. Teria que ir ao médico ainda hoje saber o que era aquilo.

Chegou ao local onde trabalhava. Estacionou o carro na cave do edifício e, metendo-se no elevador, dirigiu-se ao seu escritório sentando-se à secretária e ligando o rádio para se distrair com música e ouvir os noticiários, o que fazia habitualmente. Foi assim que Joaquim soube ao fim da manhã, que por todo o lado e a toda a gente tinha acontecido a mesma coisa e que a situação se estava a tornar caótica estando o governo reunido para decidir se decretava ou não o estado de sítio. Não existia em parte alguma um único relógio e até mesmo relógios que não funcionavam como o da estação de comboios de Campolide tinham desaparecido. Falava-se no Apocalipse, no fim-do-mundo e os bruxos, profetas e videntes tinham saído à rua. O grande negócio era no momento a venda de amuletos de toda a espécie, principalmente os de origem brasileira. Olhou para a parede em frente onde costumava ter um relógio redondo, um belo relógio que um cliente lhe oferecera e que, claro, tinha sido substituído por um buraco negro do qual saía uma inexplicável brisa gelada.

Levantou-se do cadeirão e lentamente dirigiu-se ao buraco com a intenção de espreitar e matar a curiosidade. Na mão levava uma pequena lanterna de bolso, também um brinde de um cliente, que tinha na gaveta da secretária para qualquer emergência pois faltava muitas vezes a luz. Chegado junto da parede e do buraco acendeu a lanterna e apontou-a para o interior deste. A luz era fraca e era difícil ver alguma coisa mas pareceu-lhe divisar na penumbra do fundo do buraco uma forma escura que se movia. Afoito enfiou o braço dentro do buraco procurando levar a lanterna mais à frente e apontar para a forma móvel. Conseguiu.

E assim viu pela primeira vez um demónio devorador do tempo. Era pequeno, pouco maior que um gato de rua, o corpo negro como carvão e coberto de espessos e abundantes pêlos, lembrava vagamente um pequeno macaco como os que surgiam nos documentários do National Geographic. Na cabeça redonda, abaixo de um par de pequenos chifres cinzentos, tinha um par de olhos brilhantes, enormes e vermelhos cor de sangue, e a sua boca rasgada ostentava um sorriso estranho e cínico do qual despontavam duas ameaçadoras presas amareladas, enquanto o fitava do fundo do buraco. Tirou rapidamente o braço do buraco e recuou assustado com aquela visão. O ser, por seu turno, aproximou-se da abertura e espreitou para fora sorrindo com grande à vontade. Joaquim, sentado à secretária para onde tinha voltado, olhava apavorado sem saber o que fazer. À luz do dia o animal tinha um aspecto ainda mais horripilante e ameaçador. Que horas seriam? Interrogava-se Joaquim.

A julgar pela fome que sentia talvez horas de almoço. Pôs de lado os papéis em que estava a trabalhar, levantou-se e saiu para ir ao restaurante do costume. Almoçou sozinho, rapidamente, um caldo verde e um arrozinho de polvo acompanhado de um excelente tinto alentejano. Em cima, uma bica e um bagaço, para rebater. Depois de pagar regressou ao escritório. O bicharoco lá continuava à espreita no buraco. E, de acordo com os noticiários que continuava a ouvir na rádio, havia imensos testemunhos de aparições de bichos daqueles à entrada dos buracos sem que se soubesse o que eram ou o que pretendiam. Aquilo já se estava era a tornar chato como a porra! Pondo de lado o trabalho Joaquim regressou a casa farto de relógios desaparecidos e buracos com demónios a viver lá dentro que ninguém explicava.

Chegado a casa dirigiu-se à sala onde tinha o bar e serviu-se de uma dose bem generosa de aguardente velha que um primo lhe oferecera pelo Natal. Sentou-se no sofá a saborear a bebida. Olhou para a parede. O buraco lá continuava, com um daqueles demoniozinhos sacanas a espreitar. Aquecido e embrutecido pelo álcool, Joaquim não esteve para se chatear mais. Levantou-se, foi ao armário da despensa e regressou empunhando uma espingarda caçadeira. O demónio olhou estupefacto para ele não se apercebendo do que se preparava para acontecer. Joaquim levantou a arma apoiou-a com força no ombro apontou e, sem hesitar ou não fosse ele um exímio caçador de longa data, premiu o gatilho. A poderosa carga de chumbo saiu compacta disparada a grande velocidade e carregada de energia destruidora e apanhou o atónito demónio em cheio nos cornos, desfazendo-lhe a feia carantonha e projectando-o com violência para o interior do buraco onde desapareceu sem um pio. Joaquim foi à despensa arrumar a arma e quando voltou tudo tinha voltado à forma inicial.

Lá estava na parede no lugar do costume o relógio a funcionar perfeitamente. Olhou para o pulso onde o seu relógio estava como o tinha posto de manhã. Serviu-se de mais uma valente dose de aguardente e sentou-se satisfeito a saboreá-la.
Nunca mais os demónios devoradores do tempo voltaram a manifestar-se pois espalhou-se entre eles que um tinha levado um tiro nos cornos! Tudo está bem quando acaba bem.

onde é que se meteu toda a gente?

O homem estava vestido com um fato cinzento escuro, usava uma camisa clara listada de azul e uma gravata às bolas e tinha calçados sapatos pretos de verniz. Estava parado com as mãos nos bolsos das calças. Olhou as letras enormes visíveis numa placa azul na parede cinzenta à sua frente. Letras brancas que formavam palavras. Palavras que o homem sabia eram indicadores de direcções e nomes de locais pois ele estava parado num corredor do metropolitano. Olhou para um extremo do corredor e depois para o outro extremo. Ninguém. Não se via vivalma. O que era estranho àquela hora pois era hora de ponta. Onde se teria metido toda a gente?

Identificou numa das placas a palavra "gare" e seguiu a direcção indicada pela seta. Estranho, a gare estava também vazia. O homem parou a meio e voltou-se para o lado dos carris pois um estridente uivo metálico, como se aqueles túneis fossem o refúgio de algum lobo cibernético indicava a aproximação de um comboio. Este não tardou a parar à sua frente com o guinchar frenético dos travões, das garras metálicas do lobo arranhando o chão também metálico, para se conseguir imobilizar. As portas abriram-se e ninguém saiu. O homem deu um passo em frente e espreitou. O comboio estava vazio. Onde é que se teria metido toda a gente?

Entrou no comboio e agarrou o varão. O comboio partiu imediatamente com um solavanco que o fez oscilar e agarrar com mais força. O homem olhou ao longo da carruagem vazia. Mas onde é que se teria metido toda a gente? Com um estremeção o comboio parou na gare da estação seguinte. O homem aproximou-se da porta a qual se abriu à sua frente e ele saiu para a gare. Vazia.

Voltou-se na direcção que pretendia seguir e caminhou ao longo do túnel mal iluminado que se abria à sua frente. À medida que caminhava sentiu que o pavimento se inclinava para baixo. Estranho, muito estranho... Parou. Seria que estava a sofrer duma queda de tensão? Mas sentia-se perfeitamente bem. Não tinha nenhuma sensação de tontura. Os seus sentidos apurados diziam-lhe que não era ilusão. O chão estava mesmo a inclinar-se! Seria o efeito de algum terremoto? Não lhe parecia pois o chão não abanava, apenas se inclinava, nem se ouvia qualquer barulho. Era como se toda a Terra estivesse a adornar! Tentou voltar para trás e fugir na direcção de onde tinha vindo mas os pés começaram a patinar no pavimento e arranhou as palmas das mãos, numa vã tentativa para se segurar. O túnel estava cada vez mais inclinado. Até que lhe foi impossível aguentar-se de pé e tombando, rodopiou e caiu de costas começando a escorregar ao longo do túnel cuja inclinação era agora muito grande pelo que não conseguia parar. Gritou. A sua velocidade aumentava cada vez mais tornando-se estonteante. Rolou e voltou-se de barriga para baixo tentando com as mãos travar a descida mas apenas conseguiu arranhá-las ainda mais, partir uma unha e perder um sapato. No fim do túnel sentiu que caía na vertical alguns metros e sentiu que algo mole amortecia a sua queda imobilizando-o.
Levantou-se cambaleante tacteando-se e apalpando-se a si mesmo mas não sentia nada partido. Olhou então em torno de si. Encontrava-se numa imensa e gigantesca sala circular, como um poço, de paredes escuras e sujas com aberturas a toda a volta a poucos metros de altura. Era por uma delas que tinha caído. Presumiu que as outras pertenceriam também a túneis. A sala era tão alta que não se distinguia o tecto, mas estava iluminada com uma estranha luz difusa, amarelada. Havia um silêncio mortalmente medonho à sua volta pelo que olhou com atenção. E estremeceu, quase caiu com o choque. Um arrepio gelado percorreu-lhe a espinha. A sala-poço estava repleta com milhares de corpos humanos deitados a trouxe-mouxe uns por cima dos outros, no meio de um agoniante fedor a bedum, aparentemente mortos.
Finalmente sabia onde se tinha metido toda a gente!

trovão na nave

O corredor rectilíneo, metálico, brilhava húmido. Pequenos focos luminescentes, pirilampos neónicos, pegajosa e purulentamente cravados no tecto, ejaculavam jactos de luz verdengosa que pingava como ranho no pavimento sujo e molhado.

O homem estava nu. Com calma mas energicamente caminhava pelo corredor sondando todos os esconsos, cumprindo uma qualquer missão de exploração. Foi apanhado de surpresa pelo súbito e imprevisível estrondo. Como um trovão jurássico, um som cavo ressoou na nave abandonada violando o silêncio perene. Parecia um imenso gongo, longínquo, distante. O homem, atingido pelo espesso ronco, perdeu os sentidos, fechou os olhos e, indo abaixo nas pernas, caiu no chão. Ficou imóvel como um boneco de trapos. O eco do trovão, que ficara a ressoar, deixou de se ouvir. Fez-se um silêncio absoluto. O espaço e o tempo pararam e imobilizaram-se. O corpo do homem ficou ali caído. E assim foi durante milénios.

Era linda! O olhar intenso e profundo, espelhado em olhos cor de mel e pupilas de antracite. O nariz pequeno, agarotado, perfeito. A boca de sorriso maroto. Pequenas covinhas nas faces tímidas. Os cabelos castanho-claro com laivos de ouro, tocando a base do pescoço, ondulavam em liberdade, inebriantes. Deslocava-se com a graça de uma deusa. Os seus pequenos e delicados pés tocavam o chão como se caminhasse sobre nuvens fofas. Olhava em frente, segura dos seus passos. À sua passagem a luz acendia-se saudando a sua nudez, cumprimentando-a e fazendo-lhe uma vénia, e voltava a esfumar-se, ternamente, depois dessa carícia de amante.

De súbito, estacou. Tombado no chão, um corpo mole a trouxe-mouxe, sem roupas, lembrava vagamente uma figura humana. A sua imobilidade era quase absoluta. Apenas o cabelo cinzento se agitava tenuamente, acariciado pelo ar frio e bafiento que corria ao longo das superfícies do corredor, como bafo da goela de um monstro. Nada mais se via ou percebia. O corredor metálico, o corpo tombado. Imobilizou o olhar naquela forma amorfa caída ao fundo do corredor, lá onde a penumbra reinava ainda. Reconheceu-o. Um rosto doce, suave, belo e pleno de masculinidade surgiu à sua frente saído do fundo da sua memória. A pouco e pouco, como num jogo aquoso jogado numa vidraça batida pela chuva, ao rosto juntou-se o cabelo escuro, o pescoço forte, os ombros altivos, o busto rijo de peitorais pétreos, o tronco do qual saíam dois braços apolíneos e ancas taurinas feitas para o amor carnal, assentes sobre pernas espessas, projectadas como colunas. Todo aquele corpo que agora evocava se assemelhava a um templo marmóreo. Marmóreo mas efémero. E, como se um pingo tivesse caído na superfície do lago calmo que era o espelho da sua memória, a imagem desapareceu bruscamente. Piscou os olhos e retomou a marcha. Agora com passadas mais rápidas e enérgicas. Rapidamente chegou junto do vulto caído. O silêncio era agora mais profundo.

Estacou junto dele de braços caídos. O seu olhar procurou os olhos dele, meio ocultos pelo rosto tombado sobre a face direita. Tinha os olhos fechados e estava completamente imóvel. Mas não como um ser fenecido. Parecia antes que dormia serenamente. E por isso ela não se sobressaltou nem chorou. Simplesmente acocorou-se num descer lento, suave, com a leveza de uma pena que cai planando até ao chão. Estendeu a alva mão de menina na direcção do rosto dele e, sorrindo ligeiramente, acariciou-o com as costas dos dedos. O rosto dele estava frio como gelo. Era como feito de pedra. Não transmitia calor algum. Apenas a rigidez dura de rocha sólida. Ela não estremeceu sequer, ante aquele contacto intemporal. Pousou o joelho direito no chão e deixou-se ficar acocorada de braço estendido, mão no rosto dele, olhando-o ternamente. O tempo parecia ter parado. Durante uma pequena fracção de eternidade. Até que aconteceu.

Aconteceu de novo. Um som de trovão ribombou e repercutiu-se pelas paredes parecendo abalar as mais profundas estruturas. O troar atingiu-a. Ela sentiu a cabeça andar à roda, sentiu-se desfalecer. Entreabriu os lábios como se quisesse dizer algo mas não teve tempo. Perdeu a consciência e tombou para o lado. Por estranho acaso caiu de tal forma que o seu corpo ficou deitado ao lado do corpo dele, com o braço a abraçá-lo por sobre o tronco. De novo se fez um silêncio absoluto. De novo o espaço e o tempo pararam e imobilizaram-se.
E, de novo, assim foi durante milénios.

Espranza

Olhou em frente. A planície negra, nua de vida, estendia-se até ao horizonte longínquo. O chão duro estava pejado de calhaus amarelados e escuros aleatoriamente dispersos. Sobre a sua cabeça, um céu esverdeado envolvia a paisagem. Um céu frio e deprimente, no qual um sol amarelado lentamente traçava a sua trajectória. Acelerou um pouco mais. O veículo deu um salto em frente, cuspindo calhaus com as espessas rodas. O motor guinchou do esforço. Mas aguentou.

Há dez horas que se movia sem parar, desde que saíra de Demburgo. A urgência da viagem levara-o a partir sem sequer reabastecer de água o seu veículo. Sorte a sua ter combustível suficiente para a viagem. Sete mil quilómetros de planície inóspita, deserta, vazia de tudo, até Espranza. Catorze horas de viagem a uma média de quinhentos quilómetros por hora, o máximo que o seu veículo poderia aguentar. Mas catorze horas debaixo de oitenta graus centígrados, à sombra!… Certo que o veículo estava equipado com deflectores e dissipadores de calor poderosíssimos. Mas mesmo assim a temperatura no interior podia chegar facilmente aos quarenta graus. E em Novarespublica o dia durava oitenta horas terrestres! Uma paragem forçada no deserto era, sem combustível e sem água, a morte certa. E tinha já, para que não o esquecesse, passado por destroços de veículos cujos ocupantes tinham 'provado' o sabor da derrota. Enfim, mais um esforço, mais quatro horas, e Espranza estaria à vista, qual tábua de salvação.

Espranza, Esperança. O nome da povoação era consequência da colonização do planeta no longínquo ano de 2631 por colonos terrestres oriundos de um país, do antigo continente Europa, chamado Portugal. Por determinação do Conselho Superior de Colonização Terrena, de acordo com a lei que estabelecia que um novo planeta a colonizar deveria ser subdividido em áreas proporcionalmente equivalentes às áreas das nações terrestres e atribuídas por sorteio a todas elas, a essa nação tinha sido atribuída em Novarespublica uma área de 20 000 km2. Para aí Portugal tinha enviado os seus colonos, os quais baptizaram a instalação inicial, em cujo local nasceria a capital da colónia, com o nome de 'Esperança'. Corrompido pelo tempo, o termo evoluiu para 'Esprança' e posteriormente para 'Espranza', nome pelo qual era actualmente conhecida essa fantástica e imensa cidade. Enquanto pensava em tudo isto, para se distrair da monotonia mortal da viagem, Diogo não tirava os olhos do horizonte. A planície continuava negra, pejada de calhaus amarelos. O céu continuava verde. O sol continuava amarelo. Os pontos de referência não existiam e a navegação era feita com recurso a um computador de bordo.
Todas as cidades do planeta estavam equipadas com rádio-faróis e os veículos equipados com receptores e computadores de navegação. Um monitor no tablier mostrava a posição do veículo, através de um ícone, e as posições das cidades mais próximas, num raio de 1 000 km, devidamente identificadas por códigos específicos para cada uma delas. Olhar o monitor era como olhar um mapa, com a vantagem de termos nele constantemente, a nossa posição. Diogo voltou a concentrar-se nos seus próprios pensamentos. Nos motivos pelos quais se tinha decidido repentinamente a fazer aquela viagem sem tomar as precauções mínimas de segurança. Aquela sua velha ânsia. Aquele seu desejo que o mantinha vivo e a respirar. A Verdade!

A sua vida tinha sido um constante saracotear de um lado para outro, de ideia em ideia. A Verdade. Ambição louca de tantos indivíduos. Muitos tinham sido aqueles que, no passado, se tinham dedicado, tinham dedicado uma vida inteira, a essa busca. Diogo, sem saber porquê, não tinha escapado ao contágio desse vírus terrível que é o querer conhecer a Verdade. Não uma verdade, mas a Verdade. A sua busca tinha-o conduzido de terra em terra, pessoa em pessoa, e cada vez via mais longe o seu objectivo. Até dez horas atrás. Estava ele calmamente esquecido de tudo e de todos, sentado num pequeno e insignificante bar de Demburgo, bebendo um gim tónico e dedicando-se a olhar para o copo quando um indivíduo que ele conhecia de vista daquele bar se acercou e, sobranceiro, lhe dirigiu a palavra:
— Quem espera sempre alcança!

Diogo olhou para o homem, fitou-o nos olhos fixamente e não respondeu. O outro, inclinando-se um pouco, olhou de novo para ele e falou:
— Quem espranza sempre alcanza! se és, e acho que és, Diogo, há alguém que quer falar contigo com urgência.

Diogo voltou a fixar o homem. Não lhe parecia alcoolizado. O seu vestuário era vulgar, a sua pose normal. Apenas os seus olhos negros e incisivos, a sua boca fina e o rosto magro, saíam da vulgaridade. Ao fixá-lo, Diogo sentia que aquele homem estava a dizer algo de importante. Pegou no copo de gim, levou-o aos lábios, deu mais um golo e disse, duramente:
— Quem és e o que queres de mim?

O outro olhou-o, sorriu, ou pelo menos parecia que o tinha feito e retorquiu:
— Quem eu sou não interessa. Não é, de facto, relevante. Mas sei quem tu és. E ela também sabe... Por isso que te quer ver.
— Ela quem?

O homem não respondeu. Olhou em torno de si mesmo, olhou o tampo da mesa, meteu a mão no bolso e tirou um pedaço de papel sujo, que pousou em frente de Diogo. Lentamente, falou:
— Fundir-se-ão o caos e o cosmos numa só coisa?

E levantando-se rapidamente da cadeira onde entretanto se tinha sentado saiu disparado sem dar tempo a Diogo de o interpelar. Desapareceu. Para sempre. Diogo ficou imóvel durante alguns minutos pensando no estranho encontro. A pouco e pouco a curiosidade venceu-o. Estendeu a mão e pegou no papel. Olhou-o. Um nome: ‘Mutcha’; uma morada: ‘Bardo Siegref, Zona Tri, Espranza’; uma frase: ‘kaos e kosmos, Esperança, o pêndulo’. O choque foi enorme! Levantou-se rapidamente, atirou uma nota para cima da mesa sem mesmo ver o valor, e saiu disparado porta fora em direcção ao seu veículo. Entrou, sentou-se, deu à ignição, meteu prego a fundo, arrancou.
E aqui estava agora. No deserto, em busca da Verdade!

o mundo inferior

Aqueles corredores formavam um gigantesco emaranhado labiríntico no qual não era fácil alguém orientar-se. Era conhecido pelos habitantes da Cidade pela designação de Mundo Inferior. Escuros, cinzentos, com a pintura escamada a cair como a pele de um lagarto velho e a humidade a escorrer pelas paredes, mal iluminados por candeeiros suspensos, de luz amarelada e mortiça, alguns deles há muito tempo sem lâmpadas, não admirava que fossem o refúgio preferido do bas-fond, de toda a espécie de escumalha, emigrantes ilegais sem emprego, criminosos, andróginos e prostitutas que daqueles corredores faziam os seus locais de esconderijo e de trabalho, escumalha misturada com muitos mutantes, cuja origem era desconhecida, e com imensos sem-abrigo, gente que habitava as zonas inferiores da Cidade, subproduto dela própria, e ali se escondia longe das vistas de todos, aliás para satisfação daqueles que afirmavam que naquela Cidade não havia miséria.

Mas ela existia. Por isso, naqueles corredores, era possível encontrar por todo o lado restos de comida, ávida e loucamente disputados por enormes e gordos ratos cinzentos, restos de roupas, latas, caixotes e caixas, grandes pedaços de cartão com os quais se tapavam para dormir muitos dos indigentes, vestígios de lixo humano e mesmo dejectos pelos cantos. Não era raro também encontrar cadáveres em decomposição meio comidos pelos ratos, esquecidos, porque eram de gente que não tinha quem os recordasse. Ao longo dos corredores junto à junção onde as paredes subindo se encontravam com os tectos, tubagens metálicas, negras, ou castanhas de ferrugem, corriam, algumas finas como braços outras suficientemente largas para nelas caber um homem deitado. Tubagens cheias de fissuras das quais permanentemente pingavam líquidos de cheiros fétidos e cores escuras. Nalguns sítios os tectos tinham cedido derrocando, formando montes de entulho que dificultavam a deslocação. No ar havia um permanente eco surdo e grave de maquinaria a funcionar algures nalgum recanto longínquo e profundo.
Este labirinto de corredores tinha sido construído no nascimento da Cidade, que cresceu feita de metal, plástico e vidro por cima dele. Tinha sido construído para ligar os edifícios uns aos outros permitindo a comunicação entre estes, comunicação que não podia ser feita pelo exterior devido aos elevados índices de poluição atmosférica que tinham tornado, naquele planeta, o ar irrespirável. Ar que para ser puro, tinha que ser fornecido à Cidade por uma enorme central de purificação, um coração vital bem no centro de toda a imensa estrutura que era a Cidade.

Era ao longo de um destes corredores que se deslocava Adriano respirando com dificuldade o ar bafiento, mistura de odores a morte, e pensando no motivo que o conduzira àqueles corredores onde nunca pensara voltar, depois de desactivados devido a obras alternativas feitas na superfície. Desde criança que vivia naquela Cidade, tinha lá nascido. Brincara muito naqueles corredores quando estavam activos e eram, ao fim e ao cabo, as ruas da Cidade, nas quais ele e os seus amigos patinavam nos seus skates a caminho da escola. Ruas por onde mais tarde passeara com namoradas e amigos nunca imaginando que um dia essas ruas se viriam a tornar naquilo: o Mundo Inferior. Onde as pessoas da Cidade nunca penetravam a menos que tivessem perdido a cabeça. Eram muitas as histórias que se contavam sobre pessoas que por isto ou por aquilo tinham descido àqueles corredores e que tinham sofrido estranhas mutações e acabado por desaparecer, talvez voltando para aqueles corredores onde afinal viviam tantos mutantes. Mutações por causas nunca apuradas. Adriano nunca conhecera ninguém nessas condições, mas não tinha motivo nenhum para considerar essas histórias falsas. E por isso era com o coração apertado que se deslocava ao longo dos corredores. Só mesmo um motivo muito forte o poderia ter feito arriscar-se daquela forma. E tinha um motivo bastante forte. Encontrar Nietzsche!

Por mais incrível que tal pudesse parecer. Encontrar Friedrich Nietzsche. Nas suas buscas do saber tinha conhecido uma mulher que vivera no Mundo Inferior e que tinha conseguido voltar à Cidade sem grandes sequelas. Fora ela que lhe dissera que se tinha cruzado uma vez com Nietzsche no Mundo Inferior. A princípio não quis acreditar. Afinal Nietzsche morrera em 1900, há mais de meio milénio! Era certamente um delírio dela. Mas citações que ela fizera, indubitavelmente nietzschianas pela forma e pelo conteúdo, e que ela não podia de modo algum conhecer pois eram coisas só ao alcance dos estudiosos, o que ela não era, levaram-no a pôr a hipótese de... Assim partira para tirar a limpo aquele mistério. E afinal era verdade, como constatara depois de penetrar no Mundo Inferior. Ninguém sabia como ele lá tinha chegado nem como era possível que estivesse vivo, se é que o estava. Mas a verdade é que lá se encontrava, respeitado por todos como um santo, o que aliás o divertia por um lado e o chateava à brava por outro.
Descera pela escada de acesso do seu próprio edifício, a qual terminava num cubículo escuro com uma porta vermelha que tinha colado um enorme aviso que dizia ‘Perigo, não passar, a Alta Autoridade da Cidade não se responsabiliza por qualquer acidente que os infractores possam sofrer, ficando estes entregues à sua própria sorte’; porta que dava para os corredores e que não fora difícil de abrir pois a fechadura estava enferrujada e completamente apodrecida, tendo saltado com um simples encontrão que dera na porta. E assim entrara no Mundo Inferior. Assim que passara a porta, logo ao fundo desse primeiro corredor, encontrara um mutante de olhos vermelhos cujos braços inertes e raquíticos, quatro no total, saíam da cabeça pendurados como grossas cordas. Mutante com o qual falara e que conhecia Nietzsche indicando-lhe onde o poderia provavelmente encontrar. Assim continuara, com alguma certeza e convicção, procurando no fundo da memória a disposição dos corredores e as suas direcções para atingir a zona que o mutante lhe indicara.

Caminhou horas e horas. Finalmente, chegou à velha praça. A sua memória era ainda boa e conseguira extrair-lhe as direcções e os caminhos para ali chegar. A praça era um grande largo com um jardim com bancos no centro. Para aí se dirigiu pois podia divisar uma figura humana, um velho de roupas escuras e cabeça branca sentado num dos bancos. Aproximou-se e imobilizou-se a curta distância. Apesar dos ralos cabelos brancos e do rosto enrugado como solo ressequido, ele era reconhecível por trás daquele farto e nobre bigode outrora negro. Bigode sob o qual a boca se resumia a uma linha fina e dura. Uma linha fria como uma lâmina de gelo. Enquadrada pelos olhos, de um azul profundo como a eternidade, que fitaram Adriano sem pestanejar, inquiridores, com a força de dois punhais aguçados. Adriano mantinha-se imóvel. Agora que tinha atingido o seu objectivo, não sabia o que fazer, não sabia o que dizer. Sentia apenas. Sentia sobre si num abraço asfixiante a autoridade do Sábio. Parecia-lhe que nada havia a dizer por tudo ter já sido dito. Entretanto, o velho mexeu-se. Estremeceu como se o frio o tivesse conquistado de vez e, sem tirar os olhos de Adriano, levantou para este o dedo indicador apontando-o, parkinsónico, e com uma rouca voz germânica disse, em alemão antigo:
— Guardai-vos de cuspir contra o vento! Afasta-te da turba! Cuida da tua higiene como eu cuidei da minha e por isso sou tão sábio!

vento e o sonho dos adolescentes

O vento agitava suavemente as folhas das árvores e dos arbustos, provocando um doce murmurar na paisagem. Ao longo da negra estrada e paralelo a esta saracoteava um muro baixo pintado de branco com estranhos grafittis monocromáticos de aspecto paramilitar. Implantadas como gigantescas aranhas na ainda assim bela e imensa planície verde eram visíveis ao longe as rampas de lançamento do espaçoporto onde chegavam e de onde partiam para o espaço cósmico naves de todos os tipos. Naves de transporte de pessoas e de cargas, naves de passeio, naves de exploradores, naves militares de destinos secretos, enfim naves de todas as formas e feitios, imensas e brilhantes como sóis.

Era o que observavam os dois rapazes, amigos e colegas de escola, ao lado um do outro, deitados de bruços no alto de um pequeno morro. Um deles, morador na cidade, tinha ido passar as férias a casa do outro que habitava na pequena vila perto do espaçoporto. Este tinha-o desafiado para irem até lá para verem as naves partirem e chegarem, o que era um espectáculo fabuloso e que ele nunca tinha visto ao vivo mas com o qual tinha sonhado muitas noites.

Sonhava que era um garboso e valente comandante de uma nave militar de combate e que todos os dias tinha missões no espaço exterior, onde vivia as mais arriscadas aventuras, regressando sempre à Terra, aterrando a sua nave para ser reparada e passando o resto do dia contando aos amigos e amigas, sobretudo às amigas, as suas aventuras e ansiando por regressar ao espaço e enfrentar audaz o perigo. Enfim, sonhos de um jovem adolescente. Partilhava este sonho com o amigo. E muitas das suas brincadeiras e jogos giravam em torno desse tema. Tinham mesmo formado um clube a que, pomposamente, chamavam Clube Apollo XXI do qual eram os únicos sócios. Ora, pois se para ser sócio, tinham posto como condicionante que os candidatos soubessem de cor os nomes, as moradas e os números de telefone de todos os astronautas e os nomes, os pesos, as medidas e as velocidades de todas as naves da história espacial humana!

De tempos a tempos uma imensa nave rugidora surgia do alto, primeiro silenciosa mosquinha negra contra o azul do céu, depois troante crescendo agigantando-se, que suavemente pousava numa daquelas plataformas da esperança. Numa qualquer outra rampa, em alternância, o processo era inverso e era uma que partia. Partia para onde? Para uma terra longe da Terra. Assim lá estavam deitados os rapazes, perdidos no longe. No longe que as suas jovens vistas alcançavam e perdidos no longe que a vista não alcança. De tal modo concentrados nos sonhos e alheados dos corpos que não se aperceberam que com o lento passar do tempo o vento, que tinha sido brisa, aumentara, crescera, soprava e rugia agora com violência vergando as árvores e levantando no ar as folhas e a poeira.

O vento cresceu. Cresceu muito. Transformou-se num gigante. Um gigante que tudo estremecia e volteava. E, de súbito, uma rajada imensa, imparável, vinda talvez de uma das terras sem fim, arrimou junto dos garotos e, sem que eles o conseguissem evitar, surpreendeu-os e arrebatou-os ao solo. Içou-os no ar. Curiosamente fê-lo sem violência. Rapidamente num golpe certeiro, mas sem estremeção, como uma mãe que na praia arrebata o seu bebé afastando-o da onda que ameaça tragá-lo. Energicamente mas sem magoar. Foi assim que o vento pegou nos rapazes e os levantou no ar. Pegou neles com as palmas das mãos. E transportou-os. Foi tão rápido que eles nem conseguiram reagir. Simplesmente, planaram. Viram-se de súbito a vogar por sobre o solo a uma altura que pertence só aos pássaros. Deixaram-se levar. Que outra coisa podiam fazer?

O vento transportou-os pelo ar durante algum, breve, tempo. Quando achou que já chegava, como pai que empurra o baloiço onde o filho se diverte, murmurou-lhes um suave: chega. E começou a descê-los em direcção à terra, soltando-os docemente sobre um relvado verdejante onde ficaram deitados de bruços na mesma posição em que tinham saído do morro. Olharam à volta. Nada do que viam era reconhecível. Não viam o espaçoporto, nem o muro, nem as rampas, nada. Tudo tinha desaparecido. Viam apenas uma imensa planície relvada estendendo-se em todas as direcções, no horizonte fundindo-se com um céu que já não era azul. Era avermelhado. Olharam espantados um para o outro. Sentiam-se ligeiramente entorpecidos e paralisados. Durante alguns minutos não se mexeram. Fizeram-no bruscamente quando uma voz estranha soou atrás deles. De um salto puseram-se em pé e olharam na direcção da voz.

— Sr. Comandante e Sr. Imediato, são horas de partirmos — disse o homem alto, fardado com a farda azul da Força Espacial, ao mesmo tempo que fazia uma continência. Só então repararam que eles próprios estavam fardados com a mesma farda azul. Só então repararam na gigantesca nave vermelha e negra pousada a poucas centenas de metros. Só então repararam que não eram miúdos. Só então repararam que o vento tinha caído.

o velho ferro-velho

Naquele parque abandonado, que em tempos idos tinha sido um ferro-velho, era possível encontrar um pouco de tudo. Restos de velhos automóveis e motos, carcaças ferrugentas, bicicletas, máquinas de lavar, fogões e frigoríficos, aquecedores a óleo, restos de máquinas de todo o tipo mas que já tinham deixado de funcionar há muitos anos às quais faltavam peças, certamente tiradas por alguém que assim pretendera reparar outras máquinas. E peças diversas espalhadas por todo o chão. A maioria delas impossíveis de identificar.

Era naquele parque que os miúdos do bairro próximo gostavam de brincar. O parque estava há muito fechado e murado. Mas, à socapa, eles tinham feito um buraco no muro, pelo qual se esgueiravam para dentro do parque. Numa velha furgoneta que conservava as portas e os bancos envelhecidos e à qual faltava sobretudo o motor tinham feito a sede do seu grupo, um verdadeiro clã só para iniciados, assinalada pelos grafittis na chapa da furgoneta, na qual só eles estavam autorizados a entrar, sendo a entrada vedada a membros de outros grupos, de outros bairros, que tinham as suas sedes próprias noutros locais. E era tal a guerra entre grupos que poucos membros de um grupo se atreviam a penetrar em áreas dominadas por outros. As regras estavam bem estabelecidas e as punições eram severas. Mas a guerra existia. E todos os grupos faziam por dominar áreas cada vez maiores, submetendo-se uns aos outros através da violência.

Foi dentro da velha furgoneta, em alegre discussão planeando o que iriam fazer no fim-de-semana seguinte para se divertirem, que o enorme robot de aço e plástico os encontrou. Tendo detectado a presença deles, para a furgoneta se dirigiu, em enormes e pesadas passadas. Eles, lá dentro, ouviram barulho no exterior e saíram apetrechados para a pancadaria pensando tratar-se de algum grupo rival que andasse por ali a fazer das suas. Estupefactos depararam com ele, que pelo seu lado tinha parado e os fitava com os seus circuitos a rapidamente analisarem toda a informação que os seus sensores estavam a captar. Era enorme.

Com cerca de dois metros de altura pesava cerca de meia tonelada. O seu corpo era de aço revestido de plástico negro e brilhante. Tinha uma forma vagamente humanóide, com um tronco espesso, cilíndrico, o qual continha as fontes de energia. A cabeça resumia-se a uma esfera cheia de sensores e circuitos lógicos. As pernas eram sem joelhos, assentes numa espécie de mini-tractores de lagartas no lugar dos pés. Caídos ao longo do corpo, articulavam-se dois enormes braços com garras em vez de mãos. Tinha sido construído, juntamente com muitos outros iguais, havia muito tempo para funcionarem na Lua como trabalhadores portuários, estivadores concretamente, no tempo em que ainda havia colónias na Lua antes do Grande Desastre, quando um imenso asteróide saído da cintura e que não fora detectado a tempo de se evitar o desastre se abatera sobre a superfície lunar provocando um abalo equivalente à explosão de uma enorme bomba termo-nuclear, destruindo duas das colónias e provocando a morte a mais de duas mil pessoas.
Os projectos coloniais tinham sido interrompidos tendo as restantes colónias sido evacuadas para a Terra. Todo o material não-humano fora abandonado na superfície lunar pelo que como teria sido possível aquele robot, em primeiro lugar ter alcançado a Terra, e em segundo lugar ter sobrevivido ali sem qualquer espécie de manutenção, pelo menos aparente? Mas, e isso era o mais importante, é que ele ali estava como que descido dos céus.

Como aqueles robots funcionavam comandados pela voz humana não foi difícil aos miúdos porem-no a fazer o que eles queriam. Passou a acompanhá-los por todo o lado.
E assim rapidamente se tornaram o grupo mais respeitado naquele subúrbio daquela cidade, a quem nenhum dos outros grupos se atrevia a fazer frente ou a desobedecer!