30 março 2005

Espranza

Olhou em frente. A planície negra, nua de vida, estendia-se até ao horizonte longínquo. O chão duro estava pejado de calhaus amarelados e escuros aleatoriamente dispersos. Sobre a sua cabeça, um céu esverdeado envolvia a paisagem. Um céu frio e deprimente, no qual um sol amarelado lentamente traçava a sua trajectória. Acelerou um pouco mais. O veículo deu um salto em frente, cuspindo calhaus com as espessas rodas. O motor guinchou do esforço. Mas aguentou.

Há dez horas que se movia sem parar, desde que saíra de Demburgo. A urgência da viagem levara-o a partir sem sequer reabastecer de água o seu veículo. Sorte a sua ter combustível suficiente para a viagem. Sete mil quilómetros de planície inóspita, deserta, vazia de tudo, até Espranza. Catorze horas de viagem a uma média de quinhentos quilómetros por hora, o máximo que o seu veículo poderia aguentar. Mas catorze horas debaixo de oitenta graus centígrados, à sombra!… Certo que o veículo estava equipado com deflectores e dissipadores de calor poderosíssimos. Mas mesmo assim a temperatura no interior podia chegar facilmente aos quarenta graus. E em Novarespublica o dia durava oitenta horas terrestres! Uma paragem forçada no deserto era, sem combustível e sem água, a morte certa. E tinha já, para que não o esquecesse, passado por destroços de veículos cujos ocupantes tinham 'provado' o sabor da derrota. Enfim, mais um esforço, mais quatro horas, e Espranza estaria à vista, qual tábua de salvação.

Espranza, Esperança. O nome da povoação era consequência da colonização do planeta no longínquo ano de 2631 por colonos terrestres oriundos de um país, do antigo continente Europa, chamado Portugal. Por determinação do Conselho Superior de Colonização Terrena, de acordo com a lei que estabelecia que um novo planeta a colonizar deveria ser subdividido em áreas proporcionalmente equivalentes às áreas das nações terrestres e atribuídas por sorteio a todas elas, a essa nação tinha sido atribuída em Novarespublica uma área de 20 000 km2. Para aí Portugal tinha enviado os seus colonos, os quais baptizaram a instalação inicial, em cujo local nasceria a capital da colónia, com o nome de 'Esperança'. Corrompido pelo tempo, o termo evoluiu para 'Esprança' e posteriormente para 'Espranza', nome pelo qual era actualmente conhecida essa fantástica e imensa cidade. Enquanto pensava em tudo isto, para se distrair da monotonia mortal da viagem, Diogo não tirava os olhos do horizonte. A planície continuava negra, pejada de calhaus amarelos. O céu continuava verde. O sol continuava amarelo. Os pontos de referência não existiam e a navegação era feita com recurso a um computador de bordo.
Todas as cidades do planeta estavam equipadas com rádio-faróis e os veículos equipados com receptores e computadores de navegação. Um monitor no tablier mostrava a posição do veículo, através de um ícone, e as posições das cidades mais próximas, num raio de 1 000 km, devidamente identificadas por códigos específicos para cada uma delas. Olhar o monitor era como olhar um mapa, com a vantagem de termos nele constantemente, a nossa posição. Diogo voltou a concentrar-se nos seus próprios pensamentos. Nos motivos pelos quais se tinha decidido repentinamente a fazer aquela viagem sem tomar as precauções mínimas de segurança. Aquela sua velha ânsia. Aquele seu desejo que o mantinha vivo e a respirar. A Verdade!

A sua vida tinha sido um constante saracotear de um lado para outro, de ideia em ideia. A Verdade. Ambição louca de tantos indivíduos. Muitos tinham sido aqueles que, no passado, se tinham dedicado, tinham dedicado uma vida inteira, a essa busca. Diogo, sem saber porquê, não tinha escapado ao contágio desse vírus terrível que é o querer conhecer a Verdade. Não uma verdade, mas a Verdade. A sua busca tinha-o conduzido de terra em terra, pessoa em pessoa, e cada vez via mais longe o seu objectivo. Até dez horas atrás. Estava ele calmamente esquecido de tudo e de todos, sentado num pequeno e insignificante bar de Demburgo, bebendo um gim tónico e dedicando-se a olhar para o copo quando um indivíduo que ele conhecia de vista daquele bar se acercou e, sobranceiro, lhe dirigiu a palavra:
— Quem espera sempre alcança!

Diogo olhou para o homem, fitou-o nos olhos fixamente e não respondeu. O outro, inclinando-se um pouco, olhou de novo para ele e falou:
— Quem espranza sempre alcanza! se és, e acho que és, Diogo, há alguém que quer falar contigo com urgência.

Diogo voltou a fixar o homem. Não lhe parecia alcoolizado. O seu vestuário era vulgar, a sua pose normal. Apenas os seus olhos negros e incisivos, a sua boca fina e o rosto magro, saíam da vulgaridade. Ao fixá-lo, Diogo sentia que aquele homem estava a dizer algo de importante. Pegou no copo de gim, levou-o aos lábios, deu mais um golo e disse, duramente:
— Quem és e o que queres de mim?

O outro olhou-o, sorriu, ou pelo menos parecia que o tinha feito e retorquiu:
— Quem eu sou não interessa. Não é, de facto, relevante. Mas sei quem tu és. E ela também sabe... Por isso que te quer ver.
— Ela quem?

O homem não respondeu. Olhou em torno de si mesmo, olhou o tampo da mesa, meteu a mão no bolso e tirou um pedaço de papel sujo, que pousou em frente de Diogo. Lentamente, falou:
— Fundir-se-ão o caos e o cosmos numa só coisa?

E levantando-se rapidamente da cadeira onde entretanto se tinha sentado saiu disparado sem dar tempo a Diogo de o interpelar. Desapareceu. Para sempre. Diogo ficou imóvel durante alguns minutos pensando no estranho encontro. A pouco e pouco a curiosidade venceu-o. Estendeu a mão e pegou no papel. Olhou-o. Um nome: ‘Mutcha’; uma morada: ‘Bardo Siegref, Zona Tri, Espranza’; uma frase: ‘kaos e kosmos, Esperança, o pêndulo’. O choque foi enorme! Levantou-se rapidamente, atirou uma nota para cima da mesa sem mesmo ver o valor, e saiu disparado porta fora em direcção ao seu veículo. Entrou, sentou-se, deu à ignição, meteu prego a fundo, arrancou.
E aqui estava agora. No deserto, em busca da Verdade!

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